Viciados em sucesso

"Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus amigos têm sido campeões em tudo"
(Álvaro de Campos)


Sabe aquele momento em que você vê seu nome na lista de dispensas da empresa? A hora em que você nota que seu chefe evita olhar nos seus olhos, pois sabe que vai ter que te mandar embora?

Sabe o momento em que o treinador lhe dá o colete de treino do time reserva e você percebe que perdeu a posição e vai sentar no banco no jogo de domingo?

Sabe aquela hora em que você flagra seu pai olhando admirado para um garoto que é muito mais atlético que você? Ou quando você repara discretamente na sua mãe adulando aquele colega seu do colégio que tira notas muito melhores que as suas?

Sabe aquele momento horrível em que uma periguete de vestidinho curto e colado tira a atenção do seu marido na rua?

Você se sente um lixo, não é?

Mas não deveria. A derrota faz parte da vida e ensina muito mais que as vitórias, que só entorpecem o ego e mascaram o que realmente tem valor nessa nossa existência, curta demais se comparada à da montanha de 900 milhões de anos de idade que eu vi na Chapada dos Veadeiros (GO).

Nossa sociedade, desde o nosso primeiro dia de vida, tenta nos viciar em sucesso. Vinte e quatro horas por dia, a TV nos bombardeia com famosos endinheirados, sorridentes e bem resolvidos, numa ficção tão capenga que desafia qualquer intelecto minimamente capacitado.

Todo mundo tem a necessidade de parecer bem diante das câmeras, é a regra. A modelo ou atriz leva um pé na bunda do namorado e, no dia seguinte, se deixa fotografar com seu novo gatão. Diz que está super bem, você acredita nela?

E acredita que aquele artista sumido tem mesmo um novo projeto engatilhado mas ainda não pode revelar qual é?

Então, vamos para a academia malhar, porque todo mundo quer estar em plena forma no dia em que bater as botas.

Em nome da vitória que não existe, poluímos o planeta, passamos por cima do nosso semelhante e ignoramos sofrimentos que não sejam os nossos.


Ninguém leva desaforo para casa. Pelo menos uma vez, faça diferente: deixe um desaforo conhecer a sua casa.


Somos doutrinados para a glória e isso, paradoxalmente, está nos levando para o buraco. Pergunte à Whitney Huston e ao Michael Jackson.


Ninguém mais tem estrutura para encarar uma derrota. O jogador que leva um drible desconcertante parte para a agressão ao adversário, achando que foi desrespeitado pelo craque. A mãe cuja filha brigou na escola vai até lá para espancar a aluna rival. Para não perder o emprego, todos contrariam os princípios básicos de fraternidade. "Farinha pouca, meu pirão primeiro" é a ética de mercado.


A ditadura do prazer chega ao extremo de fazer com que adultos abusem sexualmente de crianças. A mídia, que erotiza as crianças precocemente com a conivência de muitos pais, chama pedófilos de monstros, porque, se disser que são pessoas como nós, pode doer na consciência.


E, se não há dinheiro para comprar, rouba-se.


Crimes racistas são noticiados todos os dias. Nos tornamos tão gado que o boi malhado não tolera a companhia do boi preto no mesmo pasto. Tudo que precisamos é fazer parte de um rebanho monocromático, que consome o mesmo capim industrializado todos os dias. E, se não é a cor da pele, é a cor da camisa de time de futebol. Ou então a opção sexual. Tudo é motivo para bater ou até matar.


Todos querem a supremacia.


Não é à toa essa epidemia de crack. Eles estão lá, no meio do esgoto e das ratazanas, sujos e doentes, mas a sensação química interior é de euforia. O crack é a droga da moda porque fomos todos educados para nos sentirmos os donos do mundo.


E quem não fuma a pedra, provavelmente está comendo demais, ou fazendo sexo compulsivamente, ou rezando nas raias do fanatismo para que Deus lhe dê "prosperidade".


Não eduque seu filho para vencer.


Eduque-o para perder. Ensine-o a conviver com as derrotas.


Porque é com elas que se aprende como não se deve ser.



Cachorro na Praia do Diabo (RJ)/Foto: Marcelo Migliaccio

Comentários

  1. Obrigada pelo texto, Marcelo, e pelas fotos, sempre!! Hoje mesmo, acordei atrasada para o trabalho, vesti a primeira roupa ao alcance das mãos (uma bata bem "usada" e uma calça jeans bem surrada), e constatei, ao chegar, que não foi boa ideia. Daqui a pouco, temos reunião com o diretor, e, justamente hoje, que não havia previsão de nada fora da rotina! Estou, ou melhor, estava me sentindo péssima, mas agora, depois de ler seu texto, penso: Não há nada que eu possa fazer para reverter a situação e por que tenho que estar bem todos os dias? Por que tenho pensar no que os outros vão pensar? Afinal, "os outros nunca sentem. Quem sente somos nós, sim, todos nós" (Álvaro de Campos, também). Beijo, Denise.

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    1. Conforme o seu estado de espírito, essa mesma roupa pode deixar você irresistível. Beijo

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  2. Marcelo, faço minhas as suas palavras. Os pais não ensinam que a derrota faz parte da vida, e que perder não pe vergonha. Talvez por isso mesmo é que o mundo esteja como está: a vaidade e a arrogância é que fazem a guerra.

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  3. Mauro Pires de Amorim.
    Esse Álvaro de Campos é um gabola!
    Não sou nem um pouco fã desses campeonatos de vale-tudo, mas até o Dana White, presidente do UFC, durante entrevista, por acaso por mim rapidamente assistida na tv, enquanto procurava outro canal mais do meu gênero, q declarou algo nesses termos: "Não sei qual o segredo para o sucesso, mas sei que o segredo para o fracasso é querer agradar a todo mundo."
    Então a questão é essa: as pessoas realmente escolhem a quem querem agradar e a isso chamam de vitória!
    Mas daí querer dizer que são éticas, que essa é "sua ética". Uma pinóia! O conceito de ética é consensual, institucionalizado, publicamente notório e assumido.
    Ter duas máscaras, uma, publica, propagandisticamente e convenientemente "ética" e outra, antí-ética, usada nos bastidores, grupos seletos e "caçarolinhas", não passa de sociopatia mesmo! E do tipo que nada tem a ver com doença psíquica, mas deformação de caráter. Puro jeito "é titico" de ser e prática " é titica", por questão de escolha, opção. Desculpe meu gaguejar gráfico(risos).
    Felicidades e boas energias.

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  4. Prezado blogueiro...muito provavelmnete este seu texto, se não me falha a memória, (são tantos de ótima qualidade e sou tão antigo rsrs...))tornar-se-á um dos meus preferidos (ou o preferido?). Simplesmnte porque ele trata de algo tão óbvio que pouca gente se dá conta: não dá pra vencer o tempo todo. Para se ganhar um dia , por exemplo, é necessário´perder, igualmente, um dia. Cada aniversário é um ano a mais vivido, e, concomitantemtne, um ano a menos para se viver. A perda, o erro, a derrota, etc., são tão ou mais importantes que o sucesso. A vida se engendra ou se faz de um eterno e imutável "perdeganha". Seu sagacíssimo texto, hiperrealista...demonstra, exatamente, como a vida é, O estranhamento do boi malhado com o boi preto, é genial!

    As pessoas ainda?! não entenderam que tudo na vida é somente diferenças e diversidades, incluindo as próprias. Parabéns!

    Encerrando os trabalhos...para corroborar suas muito bem inspiradas e digitadas linhas, citarei as iluminadas palavras do Chico Xavier:

    "Agradeço todas as dificuldades que enfrentei; não fosse por elas, eu não teria saído do lugar. As facilidades nos impedem de caminhar. Mesmo as críticas nos auxiliam muito".
    Abraço
    Marcos Lúcio

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  5. Parodoxalmente ao assunto abordado, este texto é VITORIOSÍSSIMO, um verdadeiro OSCAR para um escritor.
    Você captou com maestria a essência da nossa época. A busca da vitória a qualquer preço sempre acompanhou a história da humanidade, mas nunca foi tão institucionalizada, difundida e praticada quanto agora.
    Como você já disse tudo, a única coisa que tenho a dizer é: "Por favor, leiam e releiam com muita atenção este texto do Marcelo Migliaccio". Parabéns pela lucidez das idéias e o saber escrevê-las.
    THEO LIMA

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  6. concordo com tudo o que disse. mas quem é o culpado o grande vilão disso tudo????hollywood???com os sus filmes mau cuidados e quem respondem a pesquisas de opiniões??? em que as mulheres são princesas que não podem ser contrariadas e os homens principes encantados que sempre conseguem chegar lá??? ou será que somos nós que nos pegamos sempre acreditando nessa porcaria toda??? quanta mentira nos envolve e massacra.

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  7. Existem dias em que acordamos diferentes. Em alguns desses dias especiais acordamos com uma inspiracao orgasmatica e fazemos coisas incriveis.
    Parece-me que voce acordou assim, quando escreveu esse texto: Apenas uma verdade que todos conhecemos e escondemos...
    Muito, mas muito bom mesmo!

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  8. Excelente texto, por isso que eu estou "viciado" nesse blog.
    Cury

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  9. Estou lendo esse texto em 30/03. Muito bom mesmo. Quantas derrotas e humilhações que nos encaminham para direções nunca antes imaginadas. Quando chegar o dia do balanço geral iremos ver que "ha males que veem para o bem". (antiguinho,mas muito real) bj. Y.

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