Cena carioca
Depois de ganhar um autógrafo do poeta maranhense, a moça trôpega se afastou e fez o estranho comentário |
Se eu fosse paparazzo estaria perdido. Pra começar, a foto ficou fora de foco, porque tive que tirar discretamente devido ao teor explosivo do local. Em segundo lugar, a personalidade que flagrei não faria qualquer dessas revistas de fofoca pagarem um tostão furado pela imagem.
Poetas não interessam no mundo do Big Brother e das amigas popozudas do Adriano, mesmo que ele seja Ferreira Gullar, um dos maiores do Brasil.
Pouco passava das seis da manhã na Avenida Atlântica, e eu lá, na minha pedalada matinal. Várias vezes já cruzei com o Ferreira Gullar no bairro. Ao andar por Copacabana, das duas uma: ou você esbarra nele ou no Fausto Fawcett (sem a Kátia Flávia). E o mais curioso é que o poeta maranhense está sempre impecável, mesmo nas primeiras horas do dia. Enquanto quem não virou a noite exibe aquela cara amassada de sono, o Ferreira não, parece que já acordou há horas e que acabou de resolver um assunto no banco. E o dia nem bem começou... mistérios de poeta.
Bom, eis que o vejo admirando um artesanato feito com latinhas de cerveja e refrigerante perto de um conhecido bar onde americanos parecendo ter saído da base afegã de Restrepo encontram garotas brasileiras que adoram se estrepar em troca de uma mixaria.
Mas o Ferreira não tinha nada a ver com aquela pegação de fim de noite. Estava apenas de passagem, admirando a arte popular do artista anônimo.
Enquanto eu contemplo tão cândida cena num cenário tão encapetado, ouço uma voz pastosa atrás de mim.
_ Dem um babel aí?
_ O quê? _ pergunto.
_ Um babel, cara, eu preciso de um babel _ implora a garota muito mais pra lá do que pra cá.
Quando decifrei que um babel era uma folha em branco, não entendi nada, pois, devido às condições locais de temperatura e pressão, pensei que ela queria outro tipo de papel, o papelote, tão presente nas noites cariocas.
Mas a moça só desejava um autógrafo do poeta, imagine!
Arranjou um babel e chegou-se a ele, tímida, evergonhada. Solícito e atencioso, Ferreira Gullar assinou e conversou um pouco com ela, educadamente e desinteressadamente, diga-se. Depois, continuou a examinar os cavalos e bicicletas feitos de latinhas de alumínio.
E a musa notívaga do poeta madrugador voltou para a companhia do amigo boêmio para exibir seu feito:
_ Cara, não sabe quem é aquele ali, não?
O amigo nada.
_ É aquele poeta, cara, o João Gullar.
Para coroar a historinha real, deixo um clássico da poesia de Ferreira Gullar, Traduzir-se, que está para a sua obra como a música Emoções está para a do Roberto Carlos.
Traduzir-se
Traduzir-se
Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir uma parte
na outra parte
– que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?
na outra parte
– que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?
Obrigada por você não perder a oportunidade de divulgar o que é bom e bonito, nem o momento de apontar o que ferve e fede na cidade.
ResponderExcluirObrigada pelo poema de Gullar. Há muito tempo não o lia, e não é que chegou na hora certa?
No mundo de BBBs o poeta não interessa. Ferreira Goulart estava certo. O poeta não fede nem cheira...
ResponderExcluiro sonho é popular
ResponderExcluireu li isso em algum lugar
se não me engano é Ferreira Gullar
falando da arquitetura de um Oscar
Que bela Cena Carioca!
ResponderExcluirO poema então ...beijos
Isabel Muniz
Este poema na voz de Nara Leão e Fagner é uma das mais belas canções brasileiras que ouvi.
ResponderExcluirMarcelo, você tem um jeito delicioso de contar histórias. Dou boas risadas.
ResponderExcluirMarcelo,eu daria tudo da minha vida,para ver a cara do Ferreira Gullar,sendo confundido com o João Goulart. rs vou trabalhar,um bom dia pra você.
ResponderExcluirMonica.
Lembro-me de Ferreira Gullar em dois momentos: o primeiro, na abertura do show Brasileirinho da Bethania, quando sua imagem é projetada na cortina transparente, recitando um poema que não é de sua autoria, mas que sua voz envelhecida contrasta com a melodia da selva amazônica, numa pequena mostra do belíssimo espetáculo que vem a seguir; o outro é quando em uma entrevista, conta do drama de ter dois filhos esquizofrênicos, do sofrimento e dificuldades de lhe dar com a doença, de como a sociedade fecha os olhos para os doentes mentais;
ResponderExcluirFico pensando se a poesia não tenha sido a válvula de escape para dor, o remédio para manter a sanidade e coração pulsante.
“Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.”
E tão por acaso esse flagrante matinal deu origem a crônica, como também a poesia para o poeta, porque originalmente pensou em ser pintor e considera-se mais um crítico de arte que um literato.(vide documentário "Por Acaso Gullar")
O acaso transformando vidas...
Na folha de papel, o autógrafo e o autorretrato:
“Não quero assustar ninguém.
Mas se todos se escondem no sorriso
na palavra medida
devo dizer
que o poeta gullar é uma criança
que não consegue morrer”
(Ferreira Gullar, “Detrás do rosto”)
Muito bom!
ResponderExcluirGostei. Muito bom. Seu blog está em meus "Favoritos". É ótimo ver pessoas criando blogs assim com conteúdo.
ResponderExcluirValeu, Tania, bem-vinda!
ResponderExcluirCom o Fausto Fawcett esbarrei muito no balcão do Cervantes, ao lado da colônia de Kátias Flávias da Prado Júnior. Ainda lamento nunca ter encontrado o Gullar. Show de bola seu blog, Marcelo. Sempre passando os olhos por aqui. Abs.
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