A despedida

Passaram-se dez anos desde que tornei público meu caso de amor com uma árvore da espécie Senna alexandrina que ficava em frente à minha casa. Ficava? Isso mesmo, é doloroso contar aqui que ela não existe mais. Assim como muitas outras do mesmo tipo aqui na Zona Sul do Rio, ela parece ter sido vitimada por uma praga _ embora há quem jure que estão sendo envenenadas. Não importa. A dor do luto é a mesma.

Minha amiga começou a secar por cima. Enquanto pequenos galhos ainda brotavam na base do tronco, a aparência no alto era tenebrosa. Ela estava morrendo e nada que eu fizesse ou dissesse a ela parecia reverter o processo. Foi muito difícil perder alguém tão próximo, com quem eu convivia diariamente havia mais de 40 anos.

Foto: Marcelo Migliaccio

Mas o pior ainda estava por vir.


Foto: Marcelo Migliaccio

O barulho da motosserra cortou meu coração.


Foto: Marcelo Migliaccio

Cada galho que caía lá do alto era um pedaço da minha história. E a dor maior era reparar que alguns ramos verdes ainda brotavam na base do tronco.


Foto: Marcelo Migliaccio

A metáfora com a minha própria finitude e as das pessoas queridas foi inevitável. O tempo é implacável para todos. Lembrei do que disse meu pai certa vez, quando perguntado se tinha medo de morrer:

_ Não tenho, não. Tudo na vida tem seu tempo.


Foto: Marcelo Migliaccio

O barulho dos troncos pesados caindo lá de cima e batendo no chão dava a ideia da preciosidade daquela vida. Quantas vezes ela, ali, quieta, me viu chegar em casa. De calças curtas, sujo do futebol; adolescente apaixonado ou desiludido com um amor impossível; adulto estressado com medo de perder o emprego ou feliz com um aumento de salário; solteiro, casado, divorciado, careta ou doidão... ela me conhecia melhor do que qualquer um.

Foto: Marcelo Migliaccio

Acabou. Mais alguns dias e nenhum resquício restaria ali. Outro caminhão viria terminar o serviço, recolher o corpo inerte. Como um parente inconformado, perguntei a um dos homens da prefeitura por que tantas árvores daquela espécie estavam morrendo. Ele não sabia. Disse que poderia ser praga ou da idade _ vivem em média 70 anos. Nunca saberemos.

Mas a vida, até mesmo quando é ruim, é boa. E minha tristeza foi interrompida alguns dias depois porque alguém novo chegou para mostrar que tudo se renova. Ao abrir a janela pela manhã, vi que no mesmo lugar da minha amiga fora plantado um pequeno Ipê, um bebê que veio para alegrar a rua e nos mostrar que sempre há um lado bom nas coisas. Claro que já lhe fiz muitos carinhos e disse o quanto ele é bem-vindo. Espero que cresça feliz e sadio e que um dia, se eu ainda estiver aqui, ele entre pela minha janela para me visitar.


Foto: Marcelo Migliaccio


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Comentários

  1. Rapaz!! Tive o mesmo sentimento quando vi a casa que era dos meus avós, no morro do Urubu, completamente destruída e nas mãos de traficantes. Chorei e entendo perfeitamente o teu sentimento. Belo texto, parabéns!!

    O tempo é o senhor de todos os destinos.

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  2. Show. Uma pena que não tenham plantado uma árvore frutífera. Há um tabu no Rio de Janeiro quanto a possibilidade de uma árvore alimentar pessoas e pássaros. Mas esta narrativa ganhou espaço na esquina. Que o Ipê floresça e apareça exuberante como sabemos que é.

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  3. Uma árvore, mesmo sendo as amendoeiras que destroem as calçadas, é sempre uma árvore e seus benefícios são muitos.

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  4. É Marcelo, a sociedade está mesmo anestesiada. Ê facil constatar isso observando o número de interações com o leitores quando o assunto é sobre natureza e as belas fotos que voce publica. Nada contra, mas enquanto isso o governo chafurda em escândalos, o feminicidio se torna comum e a reforma da previdência nos é empurrada goela abaixo. Acorda Brasil...

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  5. Como está o ipê? Mande fotos da criança!

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  6. Belo texto, meu amigo. Me fez lembrar um dos livros/conto preferido: “meu pé de laranja lima”. A poda criminosa de árvores é um dos grandes crimes oficiais que o estado/município querem nos impor. Se há doença que descubram a causa e a cura. Arrancar é reproduzir o que a PM faz nos morros e favelas. Vida longa ao Ipê. Que seja ele seu pé de laranja lima.

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