Para salvar vidas é preciso ser insensível

Sou do tipo que não pode ver sangue. De acidente, friso. Se for um desses filmes de terror, nem ligo, pois sei que tudo é uma baboseira sem tamanho. Mas se a coisa for real, como um desses desastres pelos quais a gente passa nas rodovias, aí o bicho pega. Fico paralisado.

Quando passo por algum sinistro, nem quero olhar. As mãos tremem, o estômago embrulha. Jamais eu seria um desses médicos de beira de estrada, sempre a postos para atender as ocorrências mais horripilantes. Ou um doutor de pronto-socorro, à espera dos dilacerados de sábado à noite.

É um dos trabalhos mais nobres que existem. Alguém, afinal, tem que socorrer os acidentados, tirar pessoas presas nas ferragens, resgatar baleados, muitas vezes crianças. Crianças!

Outro dia, cheguei à conclusão de que minha total incapacidade de lidar com tais situações extremas se deve ao fato eu me colocar no lugar das pessoas feridas. Isso é fatal para qualquer iniciativa que pudesse ter de ajudá-las. Até pegar o telefone e ligar para o 193 para chamar ajuda fica difícil pra mim, já que os dedos tremem.

Pois bem, já que o que me bloqueia é a minha irremediável tendência em me envolver com o drama dos outros (por isso sou socialista), comecei a pensar no ofício dos médicos, bombeiros e enfermeiros que salvam vidas.  Um ofício muito nobre, repito, fundamental. Matutei sobre que componentes de personalidade os leva a suportarem uma rotina tão draconiana, testemunhando cenas fortíssimas quase diariamente e tendo que intervir nelas com habilidade e sangue frio.

O que faz esses profissionais do socorro médico conseguirem agir com precisão literalmente cirúrgica e com a calma necessária em meio a deslizamentos de terra, batidas de caminhão, chacinas etc é justamente a capacidade que eles têm de se distanciarem do drama, do sofrimento e da dor das vítimas. Naquele momento crucial, eles precisam ser quase como robôs.

Então, paradoxalmente, concluo que é necessário se abster totalmente do envolvimento emocional para fazer esse trabalho. É preciso pegar a empatia, que é a capacidade de se colocar no lugar do outro, e jogá-la na lata do lixo. Para poder ajudar, socorrer, salvar vidas nesses momentos de grande tensão e dificuldade há que se ter uma rocha no lugar do coração.

Depois, à noite, quando as lembranças trouxerem à tona a emoção sufocada, talvez só um tarja preta resolva...

Ou seja, para ser a mão de Deus nessas horas, é preciso ser absolutamente frio e insensível. Do contrário, os homens de branco vão descer de suas ambulâncias, sentar na calçada e começar a chorar...

Foto: Marcelo Migliaccio

Comentários

  1. Verdade. Se voce parar para pensar sobre pessoas que decidem por uma carreira como as descritas ai no seu texto, concluira que elas tem que ser frias para, enquanto trabalham, nao relevar os outros. Tem que fazer o trabalho mas eu pergunto: e depois? Como ficam?
    Afinal, mesmo frias no momento em que devem assim ser, estao vendo a dor, o sofrimento, a morte e isso nao deve ser algo que simplesmente se apaga da memoria.
    Nunca esqueci algo triste que presenciei faz mais de 30 anos: um bombeiro, sentado na calcada, chorando. Ele era o motorista de um caminhao que respondia a um chamado e acidentalmente atropelou e matou uma crianca de 3 ou 4 anos, na Av. Copacabana, no posto 2.
    Esse mesmo bombeiro, que friamente, resgataria uma pessoa sob escombros, chorava por ter sido o causador de uma cena que ele estava tao acostumado a ver.
    Para mim foi um momento inesquecivel. Um momento muito triste.

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  2. Caro Marcelo,
    se me permitir vou te contar uma história: meu pai era médico e, apesar de morar e trabalhar aqui em BH, mantinha em sua casa no interior de Minas (daquelas grandonas de fazer inveja!) um anexo que era seu consultório quando lá morava (anos 40).
    Quando íamos passar férias ele era muito procurado pois o médico do posto de saúde da cidade era "de fora" como diziam e confiavam mais no "doutor da terra".
    Assistimos, meus irmãos e eu, atendimentos de todo tipo, inclusive de mulheres que chegavam com fortes dores e tinham o bebê no consultório, pois não sabiam que estavam grávidas; um capiau que chegou com a boca em frangalhos pois sua enorme dor de dentes o fez dar um tiro (isso mesmo, um tiro!) no maxilar e outras histórias mais, menos engraçadas e até fatais.
    Meu pai era o homem mais gentil e cavalheiro que já conheci (além de competente, é claro!). Não era de maneira alguma, insensível. mas quando as coisas não davam muito certo, ele se assentava em nossa imensa mesa de jantar com um copo de vinho e ficava olhando o infinito em profundo silêncio. Minha mãe nos recolhia ou nos mandava para o quintal ou a rua para que ele ficasse "olhando para dentro", como ela dizia.
    Depois nos chamava e fazia mil carinhos.
    Não era insensibilidade, pelo contrário, era uma força sobre humana e o desejo de salvar ou minimizar a dor.
    Desculpe a longa carta, mas me remeteu a belas lembranças.
    Os abraços fraternos de sempre,
    Wanda Rodrigues

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  3. Mauro Pires de Amorim.
    Eu também, não tenho a curiosidade mórbida de ficar observando acidentes. Não chego a ficar paralizado, sou capaz de prestar socorro dentro de minhas possibilidades ou seja, chamar a ambulância pelo telefone de emergência.
    Quanto à esses filmes de correria de carros, pancadaria, tiroteios e armas, nem assisto, pois para mim, além de serem irreais demais, quem já assistiu um, já viu todos. Os roteiros são praticamente clonados, colados. Muda-se somente os(as) personagens e cenários, mas efeitos especiais com "computer grafics" e "cromaquis" também são similares, idênticos.
    Filmes de terror, demônios e monstrengos também não me atraem. Classifico-os como os acima descritos.
    Mesmo as telenovelas e seriados do gênero, também não gosto. Não tenho tempo para delegar e ficar durante mêses ou temporadas acompanhando a história da vida alheia, principalmente se for ficcional. Se tiver que conhecer a história da vida alheia, prefiro selecionar de quem se trata e claro, que seja uma pessoa de verdade, não um personagem da indústria do entretenimento. Talvez seja por isso que mesmo as telenovelas brasileiras já não façam mais tanto sucesso como há 20, 30, 40 anos passados. As fórmulas ou receitas pré-prontas e esquemáticas desgastam-se.
    Prefiro filmes de pessoas mais "normais", com homens, mulheres, crianças e famílias, que sejam mais afeitos à minha vida quotidiana e que imagino eu, devem ser também mais identificáveis com a maioria da vida das pessoas.
    Seres fantásticos, sobrenaturais e situações que considero inusitáveis, não fazem parte de meu meio ou são buscadas por mim, fora o fato de que sou ateu, agnóstico, bem racional e busco a razoabilidade como ponto de equilíbrio e comportamento, quer seja em mim ou nos outros(as).
    Considero mais provável a existência de seres extra-terrenos, "aliens", do que deuses(as) e demônios(as), afinal, por projeções numéricas científicas arredondadas, simplificadas e com nossa tecnologia terráquea disponível e feita pelas agências espaciais mundiais, existem no Universo cerca de 1 bilhão de galáxias como a nossa, a Via Láctea e cada uma contendo cerca de 1 bilhão de estrelas e planetas e com isso, em todo o Cósmos, Universo, cerca de 10 mil planetas como a Terra em termos gravitacionais e atmosféricos. A questão, é o nível de desenvolvimento de vida e os tipos de seres que possivelmente possam existir nesses planetas mais similares ao nosso.
    Felicidades e boas energias.

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  4. Qual será a opinião do Marcelo sobre a mobilização (Veta Dilma) que o Cabral está querendo promover ??

    Cury

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    Respostas
    1. Acho que se ela vetar vai ser um ato político e não de justiça. Não vou nesse ato público.

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  5. Se Deus existe,ele deve ter visto que espécie de ser vivo foi criado aqui e decidiu deixá-lo só aqui e em nenhum lugar mais. A própria Bíblia narra que Deus arrependeu-se de ter feito o homem.

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  6. Médicos de emergência, enfermeiros e bombeiros sofrem muito com o que veem em seu dia-a-dia. Eles não têm nada de frios, ao contrário, são de carne e osso como nós, que não temos sangue-frio para lidar com o horror alheio. Acho que a diferença é que eles conseguem botar aquela pessoa que sofre em primeiro plano, sem olhar para si mesmos e para o próprio choque. O nome disso é mais que empatia: é compaixão.

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  7. Oi Marcelo,como vai?

    Fiquei pensando muito no que você escreveu. Sobre ter que ser frio para lidar com a dor do outro. E como cada um vive isso. Sou psicóloga e trabalho com crianças, adolescentes e famílias, às vezes com muita privação, cultural, social, econômica. E às vezes ouço coisas muito muito tristes.Ouço a dor, compartilho a dor, mas não posso levar pra casa, senão eu não sobrevivo. Mas enquanto estou ali compartilhando, ouvindo, estou ali inteira. E acredito que isso possa fazer uma diferença na vida daquelas pessoas. Mas às vezes não tem jeito, por mais que a gente coloque distância, a dor do outro não obedece e vai junto com a gente. Aí não tem jeito. Há que se dar um jeito mesmo. E no outro dia acordar com disposição pra trabalhar. Na verdade, não sei direito como acontece. Mas a gente consegue. E acho que tenta aprender a fazer alegria com pequenas coisas.

    Desculpe o longo comentário. Mas você cutucou numa área não muito rasa.
    Ah! E antes que eu esqueça, eu detesto filme de terror.

    Beijos,
    Sandra

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