Flicts


Já li muitos livros na vida mas o que mais me marcou foi um que leram pra mim. Eu tinha uns seis anos e a professora Raquel, do Instituto Souza Leão, sentada num banquinho diante dos alunos do pré-primário, nos contou a história de Flicts, uma cor que não tinha lugar no mundo. Era desprezada e sofria bullying das outras cores. Até hoje, acho que nenhuma história me impactou tanto. Talvez porque eu tivesse acabado de entrar na escola e sentisse aquela necessidade de aceitação, além do estranhamento natural de um filho único que pela primeira vez sai de casa para viver em sociedade.

Uma singela história sobre a discriminação do novo que muita gente deveria ter conhecido aos 6 anos.

À medida em que ia lendo as frases curtas de cada página, a professora virava o livro para que nós, sentados à sua volta, víssemos aquela linda trama colorida _ acho que nada fascina mais uma criança do que as cores. E assim Flicts não encontrava lugar, nem na caixa de lápis de cor, nem no sinal de trânsito, nem no arco-íris... O final da história era ainda mais surpreendente porque naquela época o Homem chegava à Lua pela primeira vez.




Durante todos os anos que se seguiram, sempre tive na cabeça que, quando fosse pai, daria aquele livro ao meu filho, ou filha, para que ele tivesse a mesma sensação incrível que tive. Dito e feito. Não sei se o efeito foi o mesmo, acho que não. É sempre assim mas cumpri a promessa feita a mim mesmo.

Muitos, muitos anos depois de conhecer Flicts, conheci pessoalmente o Ziraldo _ que agora se recupera de um AVC. Primeiro, o entrevistei no estúdio lindo que ele tem em casa e depois fui seu colega de trabalho na revista Manchete, onde, por algum tempo, ele teve uma página semanal com seus desenhos e cartuns. Minha filha, então, era pequena e lembro que perguntei a ele como tinha criado seus filhos. A resposta foi bem ao estilo dele:

_ Com a maior liberdade do mundo, não sei como eles sobreviveram.

Lembrei que havia sido colega de uma de suas filhas já adolescente, em outro colégio, o São Vicente de Paulo. E ele me perguntou:

_ Você lembra das festas que a minha filha dava lá em casa, era a maior bagunça?

_ Não, Ziraldo, eu não era convidado. Eu era o Flicts.




Comentários

  1. Peço a Deus que restabeleça logo a saúde do nosso Ziraldo e que ele volte a publicar seus livros que tanto bem fez e faz a muitas gerações.

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  2. Conheco Ziraldo de looonnnga data. Desde antes dele se mudar para um andar da casa que depois acabou comprando na R Baroneza de Pocone. Uma pessoa que possui o divino dom de se expressar com uns simples tracos numa folha de papel. Sinto orgulho te ter o Ziraldo (que trato por "Grande Caratinga!") como amigo, lamento saber que ele segue internado, embora melhor, e espero que se recupere.

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