Quando um quer, dois brigam

A manhã de domingo se arrastava modorrenta em Copacabana. Tudo que os entediados porteiros dos prédios poderiam pedir a Deus era um barraco que os divertisse, mas os pivetes (também conhecidos por aqui como "urmenó") dormiam sob as marquises.

Ora, estamos em Copacabana, um bairro em que o inusitado é iminente... até mesmo nas manhãs de domingo.

Pois o velho se preparava para atravessar a rua puxando seu carrinho de feira. Só os velhos de Copacabana e do Méier ainda puxam carrinhos de feira, esse apetrecho pré-histórico em vias de extinção.

Alheio ao velho que vinha da feira, um outro velho, não tão velho quanto o velho que vinha da feira, dá marcha à ré ao volante de seu carrão... e, no exato momento em que o pedestre ancião vai cruzar o asfalto em direção à outra calçada, o carrão lhe surpreende vindo no sentido oposto aos dos carros, numa manobra tão absurda quanto arriscada.

Até aí, descrevi o que não vi, deduzi, pois só olhei para a cena depois de ouvir os gritos do velho da feira:

_ Você passou em cima do meu pééééééé!!!!!

Quando olhei, já juntava gente para ouvir o velho da feira xingar pra valer o motorista não tão velho do carrão.

_ Porra, você me machucou!!!!! Seu irresponsável, barbeiro!!!!!

Meio acuado dentro de seu próprio veículo, o motorista primeiro fez um pedido sentido de desculpas, em voz baixa, talvez para não chamar a atenção de ainda mais gente na rua.

_ Me desculpe.

Senti uma sinceridade comovente ali. Acho que ele vinha da missa, mas sua vítima vinha da feira...

_ Desculpe é o caralho!!!!! Você podia ter me matado!!! _ o velho semi-atropelado estava irado. Se Nelson Rodrigues tivesse visto a cena, teria dito que os olhos daquele homem estavam "rútilos de ódio".

_ Desculpe! _ tentou de novo o homem ao volante.

_ Se você não tem mais idade pra dirigir fica em casa deitado na cama!!! _ continuou extravasando sua ira o velho do dedão do pé latejante, sem nem atentar para o fato de o outro ser mais novo que ele.

Os porteiros riam, ganharam o domingo. As senhoras paravam e se acomodavam para olhar, algumas cochichavam excitadas. Os pivetes sob a marquise, acordados pelo incidente, bocejavam ainda grogues de crack, solventes etc.

_ Eu estou pedindo desculpas ao senhor!  _ insistiu, um tom acima, o velho não tão velho do volante.

Mas o outro não colocava um ponto final nos impropérios:

_ Você não pode fazer uma coisa dessas, podia ter me matado, porrrrrraaaaaa!!!!!!

Foi quando o homem do volante deu sinal de impaciência, embora ainda em voz baixa, talvez na esperança que o pedestre desistisse de descarregar aquela ira toda em cima dele.

_ Eu já pedi desculpas, daqui a pouco vou mandar você tomar no cú.

O outro nem deu bola na sua catarse sem fim:

_ Tinha que ter um guarda aqui pra te prender!!!! Você é um irresponsável, babaca!!!!

E quem disse que quando um não quer dois não brigam? De repente, o sangue subiu pelo elevador de serviço e expulsou a condolência da cabeça do motorista.

_ Quer saber de uma coisa? VAI TOMAR NO CÚÚÚÚÚÚÚÚ!!!!! _ gritou o motorista antes de arrancar com seu carrão, deixando o velho da feira com seu carrinho e sua raiva ai mesmo, no meio da rua.

Copacabana é uma festa...

Comentários

  1. Tudo bem que o velho nem tão velho quanto o velho que vinha da feira estava errado, mas o velho que vinha da feira é chato pra cacete. Se não fosse tão chato, o velho do carrão poderia até ter se oferecido para levá-lo até em casa, como forma de se desculpar pelo ocorrido.

    ResponderExcluir
  2. "O sangue subiu pelo elevador de serviço" rsrs Achei demais essa expressão. É sua, Marcelo?

    ResponderExcluir
  3. Copacabana é meio que um Centro do Rio só que com praia. Sempre se pode topar com "o estranho,o bizarro,o inesperado" como dizia o bordão do programa Acredite se Quiser. Há coisa de 6 anos,num bairro desses onde o diabo não entra pra não ficar com complexo de inferioridade,numa estrada de terra o motorista de um ônibus deu um banho de lama num pedestre impecável de terno,parando no ponto coisa de 20 metros depois. Talvez por estar de terno branco,o homem deve ter incorporado o Zé Pilintra,puxou uma 9mm,foi até o ponto e mandou bala . Coisa de dar inveja a Clint Eastwood. Claro que ninguém viu nada...
    Como diz meu velho pai,saber viver é pra poucos. Por isso as cadeias e os cemitérios são os lugares mais lotados atualmente.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Imagino a cena... e o bairro em que o diabo tem vergonha de entrar...

      Excluir
    2. É fácil imaginar,Marcelo. Lembra da música "Lugar Macabro",do Bezerra da Silva? Era mais ou menos assim... rsrs

      Excluir
  4. Crônica de costumes(comportamento) da melhor qualidade. Consegui visualisar as cenas, contextos, protagonistas. A imagem do velho mala, construída em minha mente, lendo o texto, Fêz-me crer que o velho nem táo velho deve ser da paz. Todavia, como titula o texto, ás vezes, quando um quer, dois brigam.

    ANTONIO CARLOS

    ResponderExcluir
  5. Há uns quatro, cinco anos, eu no celular em Copa recebendo coordenadas pra chegar à 'massagista'. Dois sessentões se atracam a meu lado, um deles com uns dois ou três cachorros pequenos latindo, gritos, confusão, aparta, 'carma', segura daqui, dali, a mulher deve ter se assustado, desligou e não mais atendeu minhas ligações. Serenou, tudo sob controle e eu na saudade...Optei pelo plano B, usar a internet. O A era bater nos dois. Drum

    ResponderExcluir
  6. Realmente supimpa: "O sangue subiu pelo elevador de serviço".

    As atitudes infantiloídes deste velhos rs...lembraram-me de um excelente livro do gênial bruxo do Cosme Velho, que tive a felicidade e a sorte de ler (citado ao final), do qual reproduzo o que considero contextualizar , no primeiro parágrafo-com a rutilância machadiana incomparável- este "imbroglio" caricato, patético e copacabanense rs, lembrando que à época, cinquentinha era ser, de fato, velho.

    "Há criaturas que chegam aos cinquenta anos sem nunca passar dos quinze, tão simples, tão cegas, tão verdes as compõe a natureza; para essas o crepúsculo é o prolongamento da aurora. Outras não; amadurecem na sazão das flores; vem ao mundo com com a ruga da reflexão no espírito, - embora, sem prejuízo do sentimento, que nelas vive e influi, mas não domina. Nestas o coração nasce enfreado; trota largo, vai a passo ou galopa, como coração que é, mas não dispara nunca, não se perde nem perde o cavaleiro."
    A Mão e a Luva
    Machado de Assis
    Abraço
    Marcos Lúcio

    ResponderExcluir
  7. Extra, extra! Sangue de Marília Gabriela fica em dúvida mas opta por elevador social diante de pastor. Disseram ter sido necessário chamar SAMU, já que apresentadora, intoxicada pela fala do interlocutor, debatia-se sem parar cantando ♫'vc me deixa doidão!!! ô, ye, is very porreta! ô, xente, ia, iá, iá!!!!!!!'♪. Até o momento nenhuma autoridade sanitária se pronunciou no sentido de incluir tais discursos entorpecentes na lista de 'proibidos'. Drum

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas