A lenda da “invasão corintiana”

Meu amigo Álvaro Marechal conta que estava em Ipanema, no Bar Veloso, já então rebatizado de Garota de Ipanema, quando um grupo de paulistas cheios de areia chegou perguntando onde era o Veloso.

– Pra lá, pra lá – vingou-se o Marechal, aperreado com a algazarra em seu quintal.

Adepto da esportividade acima de tudo, o então presidente do Fluminense, o visionário e genial Francisco Horta, não reduziu a cota de ingressos dos visitantes, como faria um Eurico Miranda da vida. Ao contrário, mandou uma carga fenomenal para ser vendida em São Paulo. E a torcida do Fluminense, famosa por chegar ao Maracanã quase na hora do jogo, simplesmente encontrou milhares de corintianos já com seus tíquetes na mão. Mas daí a dizer que os paulistas eram maioria no Maracanã vai uma distância muito grande.

Naquela época, o Maracanã era de fato o maior estádio do mundo. Naquele mesmo ano, fui a um Fla-Flu com mais de 155 mil pagantes. Cabiam no Maraca 30 mil pessoas em pé nas gerais, 93.500 sentadas nas arquibancadas, 30 mil nas cadeiras de baixo e mais 3.500 nos camarotes. Nunca é tarde para reparar uma injustiça. Já se passaram quase 48 anos, mas a mentira persiste. Uma lenda cruel com os cariocas, porque diz que a Cidade Maravilhosa foi invadida e dominada por paulistas. A mídia contribuiu decisivamente para a perpetuação da cascata. A paixão clubística, que deconhece a razão, jogou a pá de cal sobre a verdade. Falo da semifinal do Campeonato Brasileiro de 1976, quando Fluminense e Corinthians duelaram no Maracanã. Diz a lenda que 80 mil corintianos espremeram os tricolores em sua própria casa. Não foi nada disso.

Era um domingo típico de verão. Aos 13 anos, eu, tricolor de coração, estava excitado e assustado com o estardalhaço que a TV e os jornais faziam em torno do jogo. Todos diziam que sairiam de São Paulo mais de mil ônibus trazendo os gaviões da Fiel. De fato, já no sábado, a Zona Sul do Rio foi tomada por aquele sotaque paulista. Ônibus e mais ônibus aportavam na orla. Bandeiras preto-e-branco eram vistas no Corcovado e no Pão de Açúcar. Na Praia Vermelha, fiquei frente a frente com o inimigo:

– Tem inferninho por aqui? – perguntou-me um paulista com a cara amassada da viagem na janela do ônibus.

Eu não sabia o que queria dizer “inferninho” em paulistês. Anos depois, me toquei que o cara só queria dar uma namoradinha para aliviar as tensões pré-jogo.

Eu estava sentado nas cadeiras de baixo, onde realmente havia muito mais corintianos do que tricolores. Setenta por cento, calculo. Na geral, porém, não havia um só paulista. Nas arquibancadas, divididas ao meio pela Polícia Militar, é que se sentou o xis da questão. A parte corinthiana estava sim tão cheia quanto a tricolor, mas repleta de vascaínos, botafoguenses e rubro-negros. O motivo dessa mobilização dos rivais domésticos contra o Fluminense é simples: éramos bicampeões da cidade. Nosso time, chamado de Máquina, tinha Rivelino, o melhor jogador do mundo na época, Paulo César Caju, Carlos Alberto Torres, Gil, Dirceu, Edinho, Rodrigues Neto, Miguel, Pintinho, todos de Seleção Brasileira, sem falar no argentino Doval. Botafogo, Vasco e Flamengo estavam cansados de perder para o Flu. Apavorados com a possibilidade de serem gozados novamente, foram todos para o Maracanã engordar a torcida corinthiana. Havia até mesmo bandeiras de todos os clubes do Rio, inclusive o América, no meio da Fiel.

O público pagante anunciado oficialmente foi de 146.043 pessoas, das quais, no máximo, 40 mil eram corintianos autênticos. O resto era tricolor ou carioca frustrado. Basta lembrar que, no ano anterior, mais de 90 mil tricolores assistiram à semifinal contra o Internacional no mesmo estádio.

A chamada torcida arco-íris se juntou muitas outras vezes no Maracanã. Alguém acha que no final do Campeonato Brasileiro de 1985 havia 100 mil banguenses no estádio. E no ano seguinte, eram 100 mil americanos torcendo contra o São Paulo naquela semifinal?

A “invasão corintiana” foi um mito midiático.

Durante o jogo, um temporal encharcou o gramado e impediu que os craques do Flu dominassem os paulistas. No tempo normal, empate de 1 a 1. Na loteria dos pênaltis, Renato não pegou nenhum, mas Tobias, três. Vitória do Corinthians.

O Flu estava eliminado e a lenda, condenada a virar verdade. A reparação, ainda que tardia, se faz necessária num momento em que o Fluminense vai disputar o título mundial de clubes.


Pintinho fez o gol do Fluminense num toque de gênio

Comentários

  1. Perfeito análise temporal de quem viveu e pode contar a realidade é com um adentro uma Kombi cheia de paulista virada na Vieira Souto com Farme de Amoedo sim eu estava lá...

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