"Obrigado"

Hoje acordei sentindo o frio da quarta manhã do inverno. Eram pouco mais de cinco e meia e, depois de parar por alguns instantes diante da gaveta para decidir que agasalho colocaria para começar o dia, cheguei na janela pela primeira vez. Chamou-me até ela o barulho de rodinhas arrastadas pelo asfalto.

Foi quando vi um homem negro que deveria ter mais de 40 anos embora aparentasse 60, certamente pelo sofrimento a que foi submetido neste país que renega seus filhos. Ele parou perto de um poste onde a gente de bem do meu bairro abandonara alguns sacos cheios de lixo e começou a revirá-los. Ver pessoas catando lixo para mim, infelizmente, é normal mas a finura da camisa que ele vestia naquela brisa gelada e cortante do inverno cortou também meu coração já tão retalhado por ser um coração de brasileiro.

Assoviei uma, duas vezes. Ele olhou primeiro para uma árvore, acreditando ser algum passarinho. Invisível que é, não que pudesse ser algum outro ser humano a chamá-lo. Assoviei mais e ele enfim olhou para a minha janela. Eu pedi com um gesto que ele esperasse e fui procurar em alguma gaveta um casaco ou camisa de manga para aliviar a agrura daquele homem. Foi quando escutei uma palavra vinda lá de baixo:

_ Obrigado!

Só achei uma blusa de pijama de flanela. Não, ele certamente não se incomodaria de andar com uma blusa de pijama pelas ruas se ela o aquecesse. Procurei outras roupas mas, como estou sempre doando, conservo só o essencial.

Cheguei na janela para jogar-lhe a única coisa que achei e lembrei que no banco de trás do meu carro estão várias peças de roupa que foram do meu pai e que eu juntei para distribuir nas ruas. A coisa mais fácil no Rio de Janeiro hoje é encontrar pessoas que precisam muito de ajuda. Destravei o carro com a chave magnética da janela mesmo e pedi que ele abrisse a porta de trás e pegasse tudo que encontrasse lá. Joguei também a blusa de flanela dentro de um saco plástico. 

Ele pegou várias camisas, meias e bermudas no carro, virou-se para cima e me disse com uma sinceridade comovente:

_ Obrigado, vou levar para mim e para os meus filhos.

Caminhou em direção ao seu carrinho de mão e virou-se ainda mais uma vez para a minha janela e repetiu:

_ Obrigado.

Seu isqueiro de plástico caiu do bolso quando ele continuou a caminhar. Ele agachou-se, pegou o isqueiro e logo desapareceu na rua deserta da pandemia.

Não, não estou nem um pouco orgulhoso de mim, não estou feliz por ter feito "uma boa ação", nem achei que ganhei meu dia. Não estou contando vantagem, ao contrário. A vida é uma só. Aquele homem só terá essa vida. Uma vida roubada pela ganância e o egoísmo dos verdadeiros donos do mundo, os donos do dinheiro e do poder político, os milionários, os bilionários que não conseguiriam gastar 10% do que acumularam em sua mesquinharia nem se tivessem dezenas de vidas. Mas eles _ como eu e aquele pobre homem _ só têm essa vida.

Foto: Marcelo Migliaccio




Comentários

  1. E pensar que tem muita gente que se sente bem ao fazer alguma caridade no final do ano, talvez em um exercício de limpeza de consciência por não ter feito nada que pudesse efetivamente mudar a sociedade.

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  2. Um vez ouvi numa palestra o Nilton Bonder dizer:
    Não basta confortar os aflitos, é necessário afligir os confortáveis.
    Eu acho que um dos caminhos para acabar com a miséria é exatamente esse.
    Paulo Cury

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  3. Lindo e comovente relato. De cortar o coração, a vida da nossa gente brasieira.

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  4. Texto bem reflexivo, um desabafo. Sua vida importa, foi importante na vida desse homem que voce ajudou, é importante como exemplo de ser íntegro que voce é. "Orgulho de ti" diria nosso querido Migliaccio! Salve Marcelo! Obrigada! Abraço da Elianaalves2003@yahoo.com.br!

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