O último capítulo



Eu devia ter uns nove ou dez anos quando meu pai chegou em casa com um tremendo machucado na canela. O ferimento era feio, daqueles que a gente sente dor só de olhar. Perguntei o que havia acontecido e ele contou que se machucara durante a gravação de uma cena, deixando escapar com um certo orgulho que, mesmo assim, não tinha interrompido a gravação. Suportou a dor até que o diretor dissesse corta. Dias depois, por acaso, ele estava ao meu lado quando a referida cena foi ao ar. Era algo banal, em que o personagem dele, Xerife, subia correndo na capota da popular (na época) Camicleta, uma geringonça cheia de ferros velhos pendurados. Ele me mostrou exatamente o momento em que havia arrebentado a canela e eu fiquei surpreso. Já existia videotape na televisão e nada impediria que ele parasse a gravação, não haveria prejuízo e muito menos reclamações. Mas ele, focalizado de costas e à distância, suportou a dor, imóvel, até o esdrúxulo veículo sair de quadro.

Naquele momento, Flávio Migliaccio me ensinou o que é amar e respeitar uma profissão.

Mais ou menos na mesma época, outro dos meus mestres, Raul Seixas, lançou a música A lei, em que dizia que todo homem tem direito de morrer como e quando quiser. Jamais eu imaginaria que quase 50 anos depois meu pai interromperia deliberadamente sua própria vida, numa decisão filosófica que eu tenho o dever e a obrigação de respeitar. Flávio, assim como Raul _ que também decidiu o momento de morrer deixando de tomar os medicamentos para diabetes _ dedicou sua obra a alimentar o sonho de uma sociedade diferente da nossa. Seu personagem preferido, o Tio Maneco, incentivava as crianças a respeitarem a natureza, serem pacifistas e a se interessarem mais pelo saber do que pelo consumo. Tanto o compositor baiano quanto o ator paulista se frustraram.

Numa de nossas últimas conversas, eu tentava, mais uma vez em vão, motivar aquele homem cansado, desiludido com a avalanche fascista que toma conta do planeta. O mundo está um lixo, ele me disse. Dias depois, ou antes, não me lembro, ele me deu outra razão para justificar seu desejo de sair definitivamente de cena: Já não escuto direito, minha vista está falhando, a memória também. Daqui para frente só vai piorar. Já vivi demais. Oitenta e cinco anos. Chega".

Fiz o que pude. Levei-o a quatro psiquiatras, mas ele não aguentou as bombas anti-depressivas. Os psicólogos, ele sempre recusou. Dizia que passaria horas e horas falando e o profissional jamais conheceria Flávio Migliaccio melhor que o próprio. Usei todos os meus argumentos mas meu pai não queria mais jogar. Era uma decisão tomada, acho que muitos anos antes daquele domingo em que ele disse que daria uma caminhada pelo bairro e sumiu. Como não voltava, saí pelas ruas à sua procura. Como a ausência se alongava, liguei para o sítio, distante 84 quilômetros de onde eu estava.

O caseiro confirmou. Meu pai havia chamado um táxi para ir até lá escrever a última página de um roteiro cujo final nem eu nem minha mãe, de 84 anos, pudemos modificar.

Abusado num seminário e expulso por resistir ao assédio do padre, Flávio desacreditou de Deus para sempre. Sua última peça mostra-o questionando o Altíssimo, com quem se encontra pessoalmente em seu quarto durante uma madrugada. Noticiado seu suicídio, alguns evangélicos correram para atribuir o fato àblasfêmias” ditas por ele durante o espetáculo teatral. Felizmente foram poucos. A grande maioria das pessoas, como eu, respeitou a decisão dele. Houve até quem confessasse invejar sua coragem. Descendente de italianos e fã do cinema neo-realista, Flávio fez de sua morte um protesto, um ato político.  Dramático, preferiu a corda no pescoço ao coquetel de pílulas. 

Só não posso concordar com uma frase escrita por ele na carta de despedida, a de que seus 85 anos não valeram de nada. Para muita gente, e especialmente para mim, cada olhar, cada sorriso e cada lágrima foram fundamentais. Do meu nascimento até última vez em que o vi naquela tarde de domingo, sempre me orgulhei do meu pai. 

Mesmo ele tendo saído sem se despedir de mim. Passou por onde eu estava na sala sem me olhar, bateu levemente duas vezes nas costas da minha mãe e disse, já consciente do que iria fazer:

_ Eu vou andar, tchau, tchau.

Comentários

  1. Seu pai foi um ser fantástico, certamente Deus o recebeu de braços abertos. Deus não é um padre!
    Não vou a Igreja quando o padre está lá, não gosto de padres, prefiro a Igreja vazia.
    Seu pau foi muito amado, acho que não teve a noção de quantas pessoas o amava.

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    1. Bom dia, Jorge.
      Sua última frase, segunda palavra, deve estar precisando de ser editada, não?
      Abraços.

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    2. Uma coragem absurda e uma tristeza profunda nossa por estar neste mundo que provoca tamanha dor e desesperança.

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  2. Excelente Marcelo, reflexão simples, direta e emocionante. Com certeza esse trecho não condiz, valeu muito e para muita gente.

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  3. Totalmente, sensivelmente, humanamente, conscientemente...compreensivelmente. Ele só não mente o que na sua mente a verdade dizia e que afeta os humanistas de forma letal...a falta de amor!

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  4. Eu queria dizer algo, mas não é preciso dizer nada. Que texto!

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  5. Bom saber a verdade. Era bem crianças quando vi Shazan e Xerife e só lembro que adorava. Foi doído saber que um de meus heróis havia tirado a própria vida, mas agora consigo entender e até dizer que me identifico com seus pensamentos. Obrigada por tudo!

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  6. É, Marcelo, com certeza ele não queria se despedir para que isso não esmorecesse sua determinação. Um grande pai, um grande ator. Quem sabe se o Brasil fosse um país melhor, mais justo, o desencanto que assola a tantos não o atingisse tão fortemente. Muito tocante seu depoimento. Fique bem.

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  7. A vida é uma contagem regressiva,Adeus é rotina da vida👍

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  8. Querido Marcelo, conseguirmos respeitar a decisão de alguém, é se respeitar também. Seu pai foi grande e grande é a sua obra. Fique em paz.

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  9. Seu pai é eterno em nossos corações e em nossas lembranças. Minha infância será sempre marcada pelo tio Maneco e o Shazam/Xerife! ❤️

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  10. Lindo e emocionante texto Marcelo! A sensibilidade que não mais suportou tanto descaso social, tanta barbaridade! É estranho dizer isso, mas Flávio e seu suicídio foram vistos realmente de modo profético pela sociedade! Vejo muitos inclusive eu se apropriar de suas frases pra tentar significar os atuais acontecimentos! Em relação a arte, seu pai era um gênio do neorrealismo italiano no Brasil, o único. Temos atores extraordinários e cada um com sua genialidade, mas aquele estilo de representar foi somente de Flávio Migliaccio! Quem tem tantos personagens icônicos? Poucos! Me lembra muito Roberto Begnini, já disse a ele, falei de Pinocchio etc... Uma lenda da artes e da vida!

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  11. Terezinha Rachid Ozorio da Fonseca6 de junho de 2020 às 23:53

    Marcelo, seu pai fez parte da minha infância e juventude com seus personagens.Parecidíssimo com meu pai,, principalmente qdo fazia personagens árabes e até nas desilusões desta vida.Entendo vc e principalmente ele.Fique em paz!!

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  12. Belo texto Marcelo, obrigada por compartilhar um pouco da grandeza de seu pai.
    Sinto muito mesmo por ele ainda não ter se encontrado com o Deus que habita dentro dele.
    Sempre amei os personagens de seu pai, gostava muito do tio Maneco.
    Respeitar a decisão do outro é sim respeitar si mesmo.
    Envio um abraço n'alma para você e sua mãe.
    Quanto ao seu pai passo a vibrar amorosamente por ele. Somente hoje fiquei sabendo a respeito.
    ����⚘��

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  13. Agradeço os 85 anos que seu pai viveu, eu sou um dos milhões que ele divertiu com seus personagens inesquecíveis.

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  14. Caro Marcelo,
    Seu pai é na minha memória um homem brasileiro exemplar, um grande artista e Companheiro fiel à humanidade.
    Trabalhamos em duas ocasiões:
    Colaborei na função de seu assistente de direção no último filme da série "Tio Maneco", o "Maneco, o Super Tio" em 1978, produzido pela RFF e em 2007 entrevistei Flávio para o documentário de longa-metragem "Olhar de um Cineasta", sobre a vida e a obra do saudoso companheiro catarinense Marcos Farias, que dirigiu o episódio "Um Favelado", do consagrado filme "Cinco vezes Favela", onde Flávio interpretou o favelado.
    Foi a última vez que estive com ele.
    Um forte e virtual, porém fraterno abraço.

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  15. assisti a última peça que ele esreveu e interpretou tão maravilhosamente. amo teatro mas sou envergonhada, porém naquele dia fui dizer que havia me emocionado,

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  16. Num texto belo,corajoso e forte desenha o perfil de Flávio Migliaccio
    seu filho Marcelo!

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  17. Vibrei quando assinei, pela Dinafilme, contrato de redistribuição, e entre os filmes estava "As Aventuras de Tio Maneco". Adorava o sherife da tv, mas tio Maneco carrego comigo.

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  18. O Flavio se despediu de vc sim. Só não deixou claro o momento em que partiria.

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  19. Sei nome está gravado nos anais da História Brasileira!

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  20. Lindo texto: sensível e profundo!
    A obra e a arte de Magliaccio é imortal! Quanto ao corpo, que descanse!
    Um terno abraço em vc e sua mãe! Espero que ela esteja bem!

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  21. Quanto mais conheço seu pai, através de seus relatos, mas me torno convicto de suas razões e mais o admiro.

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  22. Texto lindo, assim a obra de seu pai! Agradeço a ele através de você. Sempre me divertiu muito, desde criança até os últimos trabalhos. Um grande abraço a vocês.

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  23. @Marcelo Migliaccio, você ou quem possua os direitos sobre os filmes e episódios do Tio Maneco poderiam disponibilizar o conteúdo online para que esse ícone da arte brasileira fique eternizado e seja conhecido pelas novas gerações. Certamente seriam muito mais interessantes do que as tais "lives de quarentena".
    Parabéns pelo blog e principalmente pela condição ímpar de poder chamar de pai aquele que foi herói de uma geração.

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    1. A TV Educativa apagou criminosamente 427 episódios da série Tio Maneco e por isso foi condenada em processo judicial que se arrasta há 20 anos. Meu pai morreu sem receber a indenização que lhe é devida já que era co-produtor da série junto com a TVE, hoje Rede Brasil.

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  24. Rabugento O Terrivel.

    Mesmo sem conhecer seu pai, tenho certeza que e um grande sujeito. Uso o tempo dos verbos no presente, pois acredito que a vida apos a morte fisica continua na memoria das pessoas que com os que partiram conviveram nas diferentes formas de relacoes sociais.
    E entendo seu sofrimento e estarrecimento pela forma repentina, mas nao se deixe abater pelo fato dele ter escolhido a data e maneira que escolheu partir. Isso nao e demerito algum, talvez so uma "ironia rebelde" nesse momento, para mostrar o controle da situacao.
    Mas de fato e sem duvidas, pessoa alguma conhece melhor e mais a pessoa que ela mesma.
    E essa vida do seu pai em sua memoria, lhe trara a continuidade da vida dele.

    PS. Desculpe erros ortograficos e falta acentuacao, mas estou usando aparelho configurado para outro idioma de tipos neo-latinos, mas de estrutura nao latina. E isso chega a ser curioso. O "C cedilha", so no portugues, frances e turco e usado o tipo, letra representativa da fonetica. O portugues e frances tem estrutura linguistica neo-latina, mas o turco nao, no entanto, usam para escrever tipos neo-latinos, influencia do Imperio Romano do Oriente na Anatolia e posterior Imperio Bizantino.

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  25. Marcelo
    Seu pai me moveu a escrever um livro para "cuidar das crianças de hoje". É um livro sobre teatro e educação nos anos da pandemia, e depois... Escrevi o livro em 2020 e deve ser publicado no final de 2022. E você me moveu a conversar sobre suicídio sem escrúpulos, com os estudantes de teatro e outros jovens. Fique certo que sua atitude frente ao ato final do seu pai fez e fará a diferença -- em outras casas, outras famílias, e outras tantas crises que viveremos.
    Um abraço
    Marina Marcondes Machado

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