O Chile é ali na próxima esquina

Entro no Uber e o motorista não diminui o volume do rádio. Incomodado por ter que pedir, peço. Ele leva um susto como que se dando conta da própria distração. O preço menor desse aplicativo tem seu preço: metade dos motoristas não conhece a cidade e a outra metade mal sabe dirigir. São os excluídos do mercado de trabalho neoliberal em busca de sobrevivência. O homem que está na minha frente é um desses. Ele me conta sua história:

Trabalhou numa grande rede de televisão por 18 anos. Era da equipe do mandar-chuva da emissora mas quando este deixou a casa, a casa caiu para todos os seus auxiliares.

_ Já vivi muito bem. Morava em frente à praia de Copacabana, agora divido um pequeno apartamento com a minha filha mais nova na Ilha do Governador. Quando acabou o dinheiro, a mulher foi embora e meu outro filho, graças a Deus, é nutricionista e está empregado _ diz o motorista, do qual só vejo uma banda do rosto, o cabelo bem aparado e a barba por fazer.

Sua fala mansa já me fez esquecer a deseducação do rádio alto. Quando ele me fala de sua rotina, minha simpatia vira pena.

_ Trabalho de segunda a segunda. Saio de casa às sete da manhã e rodo até oito da noite. Vivo cheio de dor no corpo.

_ Mas você não tira folga, não tem lazer? _ pergunto.

_ Não dá, meu divertimento é ver série na TV. O dinheiro não sobra. Quero comprar uma calça Levi's, porque eu gosto dessa marca, mas não consigo. Não sobra nada no fim do mês.

A impossibilidade de alguém que trabalha tanto poder comprar uma simples calça jeans me choca. Vejo que o Chile e o Equador são ali, na próxima esquina. Nunca houve tanta gente vivendo mal no Brasil. A explosão é uma questão de tempo.

Quando saiu da emissora de TV, ele tentou sobreviver vendendo refeições. Não deu.

- Com o fundo de garantia, comprei uma cozinha industrial. Contratei uma cozinheira mas durou só seis meses. Eu fornecia para funcionários de algumas empresas mas vendi fiado e levei muito calote. As pessoas eram demitidas e não me pagavam o que deviam. Outras simplesmente ficavam me enrolando. Para piorar, ainda estoquei muito alimento e tudo ficou encalhado.

Apesar do prejuízo, ainda deu para comprar o carrinho que hoje é seu ganha pão:

_ Ainda bem que eu tenho isso aqui. Onde eu arrumaria emprego com 57 anos?

Tento desanuviar:

_ Já viu Coringa?

Ele tem um sobressalto.

_ Vou hoje com a minha filha, é bom?

_ Ótimo, imperdível.



Foto: Marcelo Migliaccio


Veja como é dura também a vida de um taxista no Rio:
Páginas amarelas 




Comentários

  1. Existe mesmo, esta possibilidade de estarmos caminhando para o caos dos vizinhos. Em parte, a realidade de lá, já se instala aqui,comi indícios de um futuro tenebroso, que tbm já vivemos em parte! Oxalá seja impressão nossa! Mas, infelizmente não é!

    ResponderExcluir
  2. Fosse o Brasil "colonizado" por Holandeses ou Franceses, a nossa realidade seria outra !!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Mauro Pires de Amorim.

      Bem, realmente não acredito que se fossemos colonizados por holandeses ou franceses a realidade seria outra.
      Penso que a questão é mais profunda e não de nossas origens etnológicas. Fossem elas holandesas, francesas, inglesas, espanholas, portuguesas.... Enfim.
      Mas sim a questão histórica da independência e em que termos e condições foi feita tal transição da condição de colônia submetida à matriz, para não soberana. Essa sucessão.
      É sabido que existem muitas antigas colônias holandesas, francesas, inglesas.... Européias, hoje países soberanos em termos de autogestão e organização interna, nacional e representatividade internacional reconhecidos, que se encontram em condições piores ou similares que o Brasil.
      Penso sim, que a partir do momento em que se decide fazer uma independência, tem que se arcar com as consequências e termos existenciais do momento e futuro. Uma questão de análise e planejamento estratégico.
      Não se deve ter, herdar dívidas e fazer dívidas sobre dívidas internacionais e nacionais em todos os sentidos. Essa parte financeira e auto sustento de gestão crucial. A administração pública ou privada possui preceitos idênticos de percepção e análise estratégica, inclusive de riscos.
      Se planejando, existem margem de erros. Sem planejamento, a margem de erros é total. Então para se diminuir a margem de erros, principalmente erros cumulativos em todos os sentidos ao se chamar para si os termos de independência. Quais são os termos e condições assumidos e os riscos? Pois, assim como em nossa existência em termos de pessoa física, e a sucessão, herança. As pessoas jurídicas, sejam públicas ou privadas, também seguem essa lógica, e até uma lógica pior do que as pessoas físicas, pois mesmo com a mudança no sistema de gestão interno, ou mudança no sistema de governo (monarquia, república, autocracia, ditadura, democracia, presidencialismo, parlamentarismo, todas essas classificações) o sistema que suceder o anterior, herdará as consequências, sejam elas "positivas" ou "negativas" e terá que assumir tal realidade objetiva. A forma de gestão ou governo, é questão interna, nacional. As dívidas, sejam nacionais ou internacionais, continuam no plano numérico contábil e nos termos de cumprimento contratuais específicos ao longo da história. E como será feita essa gestão em termos de suprir, compensar esses déficits? Tudo na economia tem representação expressa numericamente na forma do padrão moeda que for (inteiro, depois da vírgula a fração do inteiro).
      Mas de fato, se uma pessoa física, jurídica, deve ao cartão de crédito (exemplo) e não paga nossa termos contratuais as prestações o que ocorre? Nos termos contratuais, haverá cláusula de incidência de juros e correção monetária e até talvez, multa por atraso, descumprimento contratual referente a forma de pagamento ao longo do tempo.
      Desculpe estar me alongando, mas de fato, essa série de fatores precisam ser levados em conta no caso específico, mesmo no caso histórico dos países e do Brasil.

      Excluir
    2. Mauro Pires de Amorim.

      Correção. Cometi erro de digitação. No 3° parágrafo, 2ª linha do meu comentário acima, deveria ser, "....condição de colônia submetida à matriz, para NAÇÃO soberana...". Mas acabou a digitação saindo errada. Agradeço sua atenção.

      Excluir
  3. Fui muitas vezes a Santiago durante a ditadura, infelizmente. A cidade eh linda! Naquela epoca conheci Carlos, que tinha uma lojinha de artigos para artes marciais proximo ao hotel Galerias, no Passeo San Agostin, onde ficava. Uma pessoa boa. Cheguei a ir a casa dele e conversamos... Nao vou me estender aquela epoca pelo obvio: era uma ditadura FDP! Mas o que posso dizer, concordando, eh que o que fizeram no Chile foi fadado ao fracasso. Os poucos que dominam seguem cada dia mais ricos enquanto a (quase nao mais existe) classe media tenta sobreviver e, a cada dia, mais miseria. Um exemplo do que nao se deve fazer. E, creia, caminhamos por essa trilha dentro desse neo liberalismo camuflado em totalitarismo de direita, que esse nosso (des)governo representa. Espero ver o povo nas ruas antes que essa corja se perpetue com as bencaos dos acefalos.

    ResponderExcluir
  4. Desde que começou a história do imptima venho dizendo neste espaço que se ocorresse seria o início das trevas no Brasil. E é isso que estamos vivendo em relação aos direitos humanos, ao trabalho, meio ambiente, etc. Espero que uma boa parte da população que entrou nessa onda perceba o erro que cometeu e volte a respeitar o processo democrático e a constituição.

    ResponderExcluir
  5. Mauro Pires de Amorim.

    Bem, tenho 54 anos de idade e na verdade que ocorre hoje é consequência do passado. Não diria de forma simplória do passado recente em relação ao tempo de vida médio das pessoas humanas, mas governos, formas de governos que se sucederam ao longo da nossa história e das histórias de sociedades específicas por volta dos últimos 200 anos, nos daria uma noção mais precisa e clara.
    Porquê em torno dos últimos 200 anos? Porque não foi nessa época aproximada em falando-se de América Latina que países se tornaram independentes, ou se dissociaram de suas origens matrizes em termos de autonomia decisória político-administrativa nacional e internacional? Então por isso. Não quero entrar nessa desgastada discussão: esquerda x direita. Bonzinhos x Mauzinhos. Heróis x Vilões. Batman x Coringa. Exatamente porque o "Santo de um é o Demônio do outro". Mas de fato, a verdade é que a América Latina jamais teve estabilidade de governos, gestacional, administrativa, econômica. E toda essa discussão não vai alterar a história passada, as consequências atuais e futuras em curto prazo em termos temporais da vida das sociedades e modelos sociais de esteio dessas sociedades.
    Mas sim, pode nos servir para aprendermos com erros do passado e não os repetirmos. Dessa origem de base cultural as sociedades ibéricas na Europa, aprenderam e aprendem a se autoconhecerem com maior precisão e realidade nas últimas 3 a 4 décadas como talvez jamais tenham feito nos últimos 300 a 400 anos. Mesmo que o preço pago por essas sociedades ibéricas européias (Espanha e Portugal) seja alto nos dias atuais. Mas enfim, nosso mundo ocidental é assim chamado porque temos base de esteio cultural no Velho Mundo. E sociedades muito mais antigas, com bagagens e história milenar.
    E para concluir em termos mais objetivos e sucintos possíveis, penso que as questões são bem mais profundas, arraigadas do que meros modelos administrativos, funcionais, formas de governos, mas trata-se de um amadurecimento de autoconhecimento e da realidade e para tanto a atual realidade é originária na realidade do passado.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Mauro Pires de Amorim

      Só uma breve colocação. Em 2022, vamos fazer 200 anos de Independência, ao menos oficialmente enquanto data. Sem querer polemizar, digo isso, porque as independências na América Latina das ex-colônias ibéricas, foram um certo "arranjo" e claro, como toda independência ou passagem para uma situação de soberania, é planejada com antecipação e mesmo as crises das colônias com suas matrizes ou dessas matrizes com outras potências, futuramente pode comprometer as recém independentes ex-colônias desde seu nascimento, se já nascerem assumindo dívidas ou no caso dessas dívidas com suas matrizes serem renegociadas no mercado de títulos com outras potências, que vinham exercendo pressão sobre as antigas matrizes dessas ex-colônias.
      Mas enfim, esse fator financeiro, econômico, desenvolvimentista tecnológico, até os dias de hoje é crucial, estratégico e cada vez mais, continuará sendo em velocidade de aceleração temporal exponencial crescente.
      E como disse Donald Trump, já há muitos anos em programa de "reality show" empresarial-administrativo" televisivo norte-americano: "Se você tem dívida, você não é dono de coisa alguma. Seu dono, o real dono de sua empresa, da sua vida, é seu credor....".
      E a mentalidade administrativa privada ou pública são idênticas.
      Mais uma vez agradeço sua paciência.

      Excluir
  6. Mauro Pires de Amorim.

    Bem, aqui vou eu novamente. Evito situações inflamadas, passionais e sempre procuro ser o mais sucinto, objetivo possível. Lacônico, falar o necessário, mas sem perder a clareza. E realmente, o nosso Século XXI é um cumulativo dos séculos anteriores e desde o final da Século XX, dos anos 90, existe um preparo, um planejamento entre potências públicas e suas potências privadas nacionais e ritmo de aceleração jamais vistos.
    Não quero ser "apocalíptico" mas na simples Wikipédia, enciclopédia gratuita a qual muito prezo, valorizo e sempre procuro contribuir para sua continuidade. Não estou fazendo spam, apenas expressando algo que existe, é real e penso ser de muita ajuda e interesse, mesmo para simples esclarecimentos em todos níveis de estudo, escolaridade que for.
    Mas enfim, a página sobre a ACADEMI é bem esclarecedora sobre a postura estratégica em termos gestacionais administrativa, econômica, tecnológica pública-privada dos governos dos EUA. Os diversos grupos e conglomerados associados, consorciados investidores participantes do Grupo ACADEMI em cada projeto específico nos diversos países e até mesmo a reestruturação administrativa e operacional de apoio e suprimento das Forças Armadas dos EUA.
    Mas porque isso? Porque o povo norte-americano quer saber o que estão fazendo com o dinheiro de seus impostos. O Orçamento Público e como a cidadania existe também para pessoas jurídicas, inclusive esses titânicos grupos econômicos que tem matriz nos EUA e que em projetos específicos associados, voltados para interesses específicos somados, acabam auferindo recursos, valores, que ingressarão no sistema financeiro dos EUA e impostos serão pagos, auferindo assim o Orçamento Público e serviços públicos em todo nível a nível nacional, padrão e qualidade de vida para o povo dos EUA. Além disso, ninguém poderá alegar em nível nacional ou internacional que existe participação direta dos Poderes do Estado dos EUA, afinal o Grupo ACADEMI é um grupo privado.
    Talvez meu jeito lacônico seja melhor compreensível lendo o simples link da Wikipédia que coloco abaixo, pois para esclarecido entendedor, um bom texto basta. Mas infelizmente os melhores textos em nossos idiomas ocidentais, estão em inglês. https://en.wikipedia.org/wiki/Academi

    ResponderExcluir
  7. Mauro Pires de Amorim.

    Só mudando um pouco de assunto, mas dentro da nossa temática de políticos e política da América Latina e especificamente do Brasil. Alguém lembra da "virada do milênio"? Como autoridades, membros de variados partidos políticos brasileiros ficaram alvoroçados com o Ano Novo de 1999 para 2000?
    Pois bem, já na época, não entendi esse alvoroço todo. Até porque, a passagem do milênio e do século, somente ocorreria de 2000 para 2001.
    É simples entender o porque. Século etimologicamente significa 100 anos e a grafia nos ajuda a entender, já que cem (100) se escreve em numeral com terminação em zero, zero (00).Assim como década, dez anos (10), com um zero. No mesmo sentido, milênio (1000).
    Logo, o final do segundo milênio e do século anterior somente se daria em 2000 para 2001. Mais precisamente, às 00 horas, 00 minutos, 00 segundos, na virada do dia 31 de dezembro de 2000, para 1° de janeiro de 2001, já que o último ano do século e milênio anterior somente acabou nesse dia e momento. Então às 00 horas, 00 minutos e 01 segundos, o primeiro segundo do dia 1° de janeiro de 2001, já seria o 1° momento do novo ano, novo século e novo milênio.
    Mas infelizmente, na nossa triste história da América Latina e Brasil, os políticos
    partidários das mais variadas siglas e alegações, tendências, se aproveitam para se exibirem. Mesmo que seja para dizer e se arvorarem num evento de erro tão crasso e bisonho como a "virada do milênio" em 1999 para 2000.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas