Paulinho Caxanga

Numa praça perto da minha casa, havia um jogo de ronda. Chegava a reunir até 20 pessoas, todas apostando alto numa das duas cartas retiradas do baralho e torcendo para que sua escolhida fosse a primeira a aparecer. Com a polícia devidamente paga, a jogatina ia até o sol nascer. Salários eram perdidos em uma noite, casamentos foram desfeitos porque enquanto o marido tentava a sorte na rua, a mulher procurava diversão em casa. Ameaças de brigas, abraços, risadas e xingamentos... tinha de tudo naquele cassino a céu aberto. A maioria dos jogadores trabalhava como porteiro no bairro. Mas também flanelinhas por vezes deixavam ali o dinheiro arrecadado aos pés do Morro da Urca, onde na época havia uma concorrida balada chamada Noites Cariocas.

Certa vez, apareceu por lá um tal de Paulinho Caxanga. "Ele é bandido" me cochicharam. Nós, os adolescentes da Urca, gostávamos de olhar o jogo, ver a raiva de quem estava perdendo e as gozações da turma. Com Paulinho Caxanga, porém, ninguém brincava sem tomar cuidado com as palavras. Todos tinham medo dele, afinal o cara era perigoso, poderia estar armado. Diziam até que fôra ele quem havia matado Zé do Queijo, um líder comunitário da Rocinha no final da década de 1970. Seria esse crime o ponto alto do seu currículo. Mas o ofício dele não era matar e sim assaltar residências. Caxanga, na gíria da favela, é barraco. E o caxangueiro é o assaltante especializado em invadir a casa dos outros para roubar.

Lembrei do Paulinho Caxanga por conta da liberação da posse de armas decretada pelo novo presidente do Brasil. Não, Jair Bolsonaro não falou até agora de medidas para melhorar a saúde, a educação, o saneamento e nem mesmo a segurança. Apenas disse ao povo: "Comprem uma arma e se virem". Pois eu fiquei pensando se o Caxanga, caso ainda se encontre na ativa, estará preocupado com o fato de poder ser recebido a bala quando pular o muro de alguma casa para garimpar os bens alheios. Será que ele mudaria de métier? Passaria a traficar drogas, sequestrar ou roubar carros? Não sei. Quando a gente tem vocação para alguma coisa é difícil seguir outro caminho...

Acho que os Caxangas da vida agora vão se tornar mais violentos e letais. Ao invadirem uma residência, estarão preparados para uma reação a bala. Claro que vão querer atirar primeiro. E, se o morador for daqueles que não seguiu as recomendações do presidente belicista, azar. Provavelmente, vai morrer por via das dúvidas. Além dos riscos de acidentes domésticos, das tragédias envolvendo vizinhos, esposas, maridos e filhos e de os especialistas em segurança atestarem a total ineficácia da medida do nosso Trump dos trópicos, a liberação da posse de armas vai tornar os assaltos a residências muito mais trágicos. Até mesmo seus maiores defensores, os policiais, estarão sujeitos a serem recebidos a tiros quando forem separar uma simples briga de casal.

Todo mundo já percebeu que a iniciativa do presidente visa dar aos latifundiários mais poder para proteger suas terras improdutivas da legião de miseráveis que vaga pelo interior do Brasil à procura de um lugar para viver e plantar. Os exércitos de milicianos das fazendas vão agora ter seus arsenais legalizados. Mas os incautos que quiserem se armar nas cidades não sabem nem de longe o que os espera.

Não sei se o Paulinho Caxanga ainda pula muros, provavelmente não _ a roda de carteado acontecia na minha rua quase 40 anos atrás. Marginais no Brasil costumam ter vida curta, são logo substituídos por dez outros recém saídos da nossa gigantesca fábrica de exclusão. Mas sei que, se não tiver morrido ou se aposentado, Paulinho Caxanga agora vai entrar nas casas disposto a arrebentar a boca do balão.


Foto: Marcelo Migliaccio

Comentários

  1. Meu maior receio eh ver um bando de idiotas virando "machos" porque estao armados. Com relacao a ter uma arma EM CASA, nao vejo porque restringir. Existe uma diferenca ter uma arma e portar uma arma: eu tenho uma arma aqui em casa, devidamente registrada, guardada dentro de um cofre que abre com a minha digital. Mensalmente pratico tiro em um local apropriado, com supervisao. Fora isso nunca usei e espero nunca ter que usar mas, se necessario, vou abrir o cofre.

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  2. Além de apoiar os latifundiários, o decreto liberando armas visa dar o devido retorno aos patrocinadores da campanha,haja vista o lucro de 10 milhões da Taurus em apenas um dia, exatamente o dia do lançamento do decreto...

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  3. Você é o cronista que o Rio precisa. Amo seus textos!

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