A censura no Sem Censura

Acabo de saber que o governo federal vai tirar do ar o programa Sem Censura, tradicional atração vespertina de entrevistas na Rede Brasil, o canal de TV estatal. Quando estreou, em 1985, eu era o estagiário que atendia às ligações telefônicas dos telespectadores. Reproduzo aqui um trecho do meu livro de memórias jornalísticas (ainda inédito) referente à minha passagem pelo programa exibido na época pela TV Educativa.



***

Embora eu estivesse me familiarizando com todas as etapas de produção na TV, queria mesmo era trabalhar no jornalismo. Depois de uns meses num programa pedagógico direcionado a professores, fui transferido para uma nova atração: uma mesa-redonda de entrevistas e debates que preencheria boa parte do horário vespertino da emissora. Era o Sem Censura. O diretor era Paulo Pálace, um veterano da televisão que pertencia à seita Universo em Desencanto, aquela mesma que Tim Maia frequentara por um período nos anos 70. Ouvir suas histórias engraçadas e os apelidos que ele colocava nos colegas era um dos meus passatempos. Suas elocubrações filosóficas, porém, eram insuportáveis. Mas eu adorava, por exemplo, que ele contasse o episódio em que evitou que o ator Jece Valadão, numa de suas tentativas de se eleger deputado, fosse recepcionado por uma chuva de fezes por um grupo posicionado num dos viadutos da Avenida Brasil. Pálace, sabe-se lá como, foi avisado antes da emboscada:

_ Porra, Jece, não vai nessa carreata, não, cara! Tem uma galera esperando com merda empacotada pra jogar em você! _ teria advertido ele ao seu amigo ator, conhecido pelos papéis de machão no cinema e na televisão.

Entre os debatedores escalados para o Sem Censura, todos antigos contratados da TVE que estavam na geladeira, havia o veterano jornalista Maneco Muller, que durante anos assinou uma coluna social na Última Hora com o pseudônimo Jacinto de Thormes. Conheci também a ex-vedete Georgia Quental e a adorável Dulce Monteiro, cujo sorriso eu via desde a mais tenra infância, quando ela já apresentava programas educativos naquele mesmo canal. Outra que conheci lá foi a atriz Lourdes Mayer, que, além de participar dos debates, ocupava um cargo de chefia de elenco na emissora. Eu também lembrava dela como a professora solidária da novela didática João da Silva, da qual eu não perdia um capítulo em 1973, torcendo pelo sucesso do personagem título, um semianalfabeto vivido por Nelson Xavier.

Nos primeiros tempos do Sem Censura, resolveram colocar um estagiário para atender os telefonemas dos telespectadores durante o programa. Como eu era o estagiário, passava quase três horas ali, anotando sem parar e lidando com os interlocutores mais estranhos, como um cara que cismou que tinha Aids. A epidemia estava no início, não havia remédio eficaz, era uma sentença de morte. Sempre que um médico participava da mesa para falar do assunto, o cara ligava várias vezes, sempre aos berros, desesperado. Ele citava os sintomas, garantia que tinha o vírus HIV, e que iria morrer. Insistia para que eu relatasse suas angústias ao doutor esperançoso de um diagnóstico, de um receituário.

PALANQUE

O Sem Censura logo transformou-se num sucesso de público, o maior da emissora naquela fase pós-ditadura, o que fez com que crescessem os olhos dos novos mandatários, todos ligados ao PMDB do então presidente José Sarney, primeiro civil no Palácio do Planalto depois de cinco generais. Com o inesperado êxito, boa parte da equipe do programa foi trocada, inclusive o diretor, e a atração foi transformada num palanque eletrônico para atacar o então governador do Rio, Leonel Brizola, e servir aos políticos peemedebistas. Como era eu quem anotava as perguntas dos telespectadores, comecei a perceber que as novas apresentadoras censuravam os muitos elogios ao governo Brizola. Só liam no ar as críticas. Minha estratégia de guerrilha então foi começar a escrever coisas que eu achava pertinentes ao debate e encaminhar à mesa com o nome de algum telespectador fictício. Sempre que possível, eu defendia Brizola clandestinamente em meio à avalanche de críticas dos debatedores, cuidadosamente escolhidos pela direção para fazer o jogo partidário do PMDB.

Interessado em mostrar serviço como quase todo estagiário, eu participava ativamente com sugestões nas reuniões de pauta que decidiam os assuntos a serem abordados no programa. Certa vez, sugeri uma pauta sobre drogas e ouvi um dos maiores absurdos da minha vida. O pauteiro, que, soube depois, assediava subordinadas, me disse que era melhor não falar sobre drogas para não incentivar o consumo! E ainda completou:

_ Em jornalismo é assim: se você quer matar um cara, não fale nele.

Logo percebi que aquela estratégia de má-fé era aplicada em quase todos os meios de comunicação contra políticos cujas idéias eram consideradas nocivas pelos seus proprietários. Por isso, Lula passou oito anos sem aparecer ou ter seu nome citado no Jornal Nacional, da Globo, que também ignorou Brizola o quanto pôde, mesmo nos dois períodos em que ele governou o Estado do Rio de Janeiro. Brizola, por sinal, mereceu mais tempo no principal telejornal da televisão brasileira no dia em que morreu do que nos 30 anos anteriores.

Foi muito decepcionante para mim ver uma empresa pública de comunicação ser usada para fins políticos, exatamente como eu sabia que acontecia nas empresas privadas. A eleição de Brizola para governador do Rio em 1982 marcou muito a minha geração, que votava pela primeira vez. Naquele pleito, votei em Lysâneas Maciel, do PT, mas como quase toda a população do Rio vibrei quando Brizola superou tudo, até uma tentativa de fraude, para vencer o candidato do PDS e dos militares, Moreira Franco. Imagine a minha decepção ao ver de perto, logo no meu primeiro emprego, como se dava a campanha contra ele na mídia. Por ironia, foi o mesmo Moreira Franco, já então no PMDB, que derrotou Darcy Ribeiro, candidato de Brizola, em 1986, com o apoio descarado não só da mídia privada mas também da emissora estatal. Aquela derrota representou o fim do projeto revolucionário dos Centros Integrados de Educação Pública (Cieps), que pretendia oferecer uma escola de qualidade, em tempo integral, a crianças carentes.

Um dos melhores momentos vividos por mim no Sem Censura foi no dia em que candidatos a prefeito na eleição de 1985 se reuniram no programa para um debate. Entre eles, estava o gozador apresentador e empresário da música Carlos Imperial, a sensação do horário eleitoral gratuito, onde aparecia batucando na mesa e cantarolando a marchinha Cidade Maravilhosa.

Franco-atirador pelo seu oportunista Partido Tancredista Nacional, alvo de protesto até da viúva de Tancredo Neves, Imperial classificava no ar um a um seus adversários com definições pitorescas:

_ Rubem Medina é o disco voador: baixinho, chato e ninguém acredita nele; se soltarmos o Saturnino Braga em Benfica ele não consegue voltar pro centro de ônibus, é de Campos, não conhece a cidade; e o Fernando de Carvalho é malufista, votou no Maluf contra o Tancredo no colégio eleitoral…

Quando chegavam para o debate na TVE, o candidato ultra-direitista Wilson Leite Passos, ex-integralista e adepto da eugenia, viu Medina no outro canto do estúdio e cochichou com Imperial:

_ Olha ali o disco voador…

Passos era potencial aliado ideológico de Medina, mas quem resiste a uma chacota?



***

Fiquei um bom tempo no Sem Censura e, apesar de ele nunca ter feito jus ao nome, o suficiente para agora, 34 anos depois, lamentar sua saída do ar.





Comentários

  1. Ponto negativo para o Bolsonaro por ter acabado com um programa com assuntos diversificados e bons.
    Gostava muito do Sem Censura com a Leda Nagle

    ResponderExcluir
  2. Histórias como essa são esclarecedoras para que não conhece os bastidores do jornalismo. São coisa que muitas vezes imaginávamos, mas passamos à ter certeza com os seus depoimentos. Obrigado por compartilhar conosco momentos tão importantes do jornalismo.

    ResponderExcluir
  3. Acabei de ler no Globo online:
    Reviravolta no caso do "Sem censura", da TV Brasil. A direção da EBC voltou atrás na decisão de extinguir o programa e comunicou à equipe na tarde desta segunda-feira, 18, que ele será exibido novamente ao vivo e ganhará outro cenário. Vera Barroso seguirá como apresentadora. Ainda não há datas oficialmente confirmadas, mas a atração deverá retornar reformulada à grade em abril.

    https://kogut.oglobo.globo.com/noticias-da-tv/noticia/2019/02/reviravolta-sem-censura-voltara-ser-exibido-ao-vivo.html

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas