O enterro da gíria

Amigos, o caso é sério. Uma expressão genuinamente carioca veio a óbito. Se ainda não morreu, está quase. Expressões idiomáticas são como os humoristas e os treinadores de futebol: têm prazo de validade. O ator cômico perde sua audiência quando não consegue mais fazer rir, quando a nova geração não entende mais as suas piadas, as suas referências. O técnico futebolístico, igualmente, perde a capacidade de se comunicar com os atletas mais novos, que simplesmente não assimilam a sua linguagem ou não acreditam nas teorias ultrapassadas do "vovô".

É triste mas é a vida.

Agora, voltando ao óbito no vocabulário popular, nunca mais ouvi ninguém encerrar uma frase com "...o caralho a quatro". Talvez os mais novos não tenham a menor ideia do que isso significa, e a eles explico: trata-se de um "etcétera" potencializado, elevado à quarta potência. O advérbio derivado do latim e abreviado como "etc" indica, segundo os dicionários, "e outras coisas mais", "e assim por diante". Mas, quando ele é, ou era, substituído por "o caralho a quatro", a coisa adquiria ares muito mais graves, ficava sugerido algo escabroso, extraordinário, chocante...

Um exemplo:

_ A polícia entrou na favela e houve o maior tiroteio. Criança gritando, mulher correndo, o caralho a quatro!

O relato acima, infelizmente tão comum aqui na Cidade Maravilhosa, ficaria muito mais frio, atenuado, sem a devida dramaticidade se terminasse com um mero "etcetera". Poderia ser muito bem a observação de um catedrático que por acaso estivesse na comunidade no momento da confusão. No entanto, se quem conta o caso é um morador da própria favela, o final da sentença certamente terminaria com o palavrão potencializado.

Às vezes, como é próprio do carioca exagerar, a expressão em desuso vinha acompanhada ainda de outros adornos que tornavam a situação ainda mais indefinidamente trágica, deixando espaço farto na imaginação do ouvinte para florear à vontade o acontecimento narrado:

_ Rapaz, a festa ontem foi demais! Teve a maior pancadaria no final. Uns caras sentaram em cima do carro de um convidado e o cara não gostou, chamou os três pra briga... aí , não sei o quê, o caralho a quatro... e a polícia chegou.

Imagine o que não aconteceu até a polícia chegar...

Ocorre que ninguém mais fala "o caralho a quatro". Pelo menos ninguém que eu conheça ou tenha escutado por aí ultimamente.

Tudo na vida passa, eu sei. Várias gírias da minha infância hoje não se escutam mais. "Chuchu beleza" por exemplo. "Joinha". Até mesmo o "maneiro" já não é usado pelas novas gerações. Minha filha franze as sobrancelhas quando eu elogio alguma coisa dizendo que aquilo é "maneiríssimo".

Ela deve sentir o mesmo estrahamento que eu quando, ainda criança, ouvi meu tio dizer que a vizinha era um "pitéu".

É... o primeiro sinal de que eu não era mais um garoto foi quando o prato de comida à minha frente ficou fora de foco e precisei usar óculos para perto. O segundo veio quando dei uma fechada sem querer em outro carro e o motorista, um jovem, exclamou: 

_ Pô, tiozinho!

Doeria menos escutar um palavrão daqueles que atingem nossa árvore genealógica...

E agora essa. Nunca mais ter escutado um "caralho a quatro" realmente acaba com a autoestima de qualquer um.


Foto: Marcelo Migliaccio


Comentários

  1. Eu que sou do tempo em que algumas mulheres eram chamadas de "cocota", confesso que nem lembrava mais do "caralho a quatro".

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  2. Adorei seu texto Marcelo Migliaccio. Foi muito prazeroso lê-lo!

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  3. ela é um pitéu: ouvi outro dia acho que somos da mesma idade, 1963. Fiquei chocado!

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  4. Realmente a expressão completa está difícil de ser escutada, mas o "caralho" continua firme (sem trocadilho). Ainda na semana passada estava na França, e ao usar um mictório que soltava água demais no exato momento em que você se coloca na posição correta, ouvi um "caralho" tão alto ao meu lado, que pensei na hora: É carioca.

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  5. Caralho a parte, se o "a quatro" faleceu, o "la na casa do" segue vivo.

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  6. Menino! Pensei nisso outro dia! Cadê as gírias? Cada verão vinha uma leva nova, algumas duravam de três a 20 Carnavais e criavam os tratados de Tordesilhas entre gerações: quem falava "brucutu" certamente era mais velho do que quem cuspia "brother" e irmão daquele que vira e mexe soltava "putzgrila". Saudade desse patrimônio imaterial carioca...

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