Aconteceu, virou Manchete

Agora que a Editora Abril está à beira da falência, encerrando várias de suas revistas e desempregando centenas de profissionais, lembro aqui a fase em que trabalhei na Editora Bloch, que na época também já estava no fim dos seus dias.



BOAS-VINDAS

Cheguei com meu amigo e colega de profissão Mauro Trindade à redação da lendária revista Manchete para o primeiro dia de trabalho e fui logo apresentado ao editor-chefe, Roberto Muggiati, que estava havia cerca de duas décadas no cargo. Depois dos cumprimentos formais, Mauro, redator como eu seria, perguntou ao Muggiati se já poderia colocar meu nome no expediente, aquela listagem, sempre em letras minúsculas, dos profissionais que trabalham na publicação. A resposta, em tom jocoso, me deu imediatamente a noção de onde estava me metendo:

_ Se ele quiser…

A depreciação partindo do próprio chefe logo se mostrou pertinente. Depois da morte do fundador, Adolpho Bloch, as empresas do grupo já haviam começado a descer a ladeira. A revista Manchete, que nos anos 50 e 60 foi talvez a principal publicação brasileira, estava uma bagunça: fofocas, panelinhas, apaniguados, mobiliário e computadores ultrapassados Funcionários com 20, 30, 40 anos de casa gozavam de uma estranha intimidade com os donos da empresa _ Pedro Jack Kapeller, o Jaquito, e seus quatro filhos, além de alguns sócios minoritários que circulavam pelo prédio meio sem função. 

Nas outras revistas da Editora Bloch o quadro era o mesmo. Ele e Ela, Amiga, Desfile, Pais e Filhos, Manchete Rural funcionavam como departamentos de uma grande estatal, estagnada e deficitária. Todo mês, estranhos empréstimos do Banco Rural garantiam a folha de pagamento, pois o faturamento não era lá essas coisas e o padrão de vida dos donos não poderia sofrer abalos. No fundo todos nos sentíamos andando na prancha, passo a passo, em direção a um mar cheio de tubarões _ a falência. Mas, como eu estava fazendo freelas desde que saíra de O Globo, topei a parada. Pelo menos teria uma grana fixa todo mês… imaginei.

Eu seria redator, a princípio, mas também faria algumas reportagens na rua. Para me testar, me deram como primeira tarefa corrigir, titular e legendar uma reportagem do correspondente da revista na Rússia, Vadim Poliakovsk. Era mesmo um bom teste, porque Vadim escrevia num misto de português, espanhol, francês, russo e inglês. Para piorar, mandava o texto em laudas cheias de remendos e rasuras. Transformar aquela zorra linguística num texto inteligível _ e, mais, agradável _ levava pelo menos duas horas.

Nos primeiros meses, a coisa até ia bem. Com a economia estável em 1997, deu até para comprar meu primeiro carro zero, adquirido inteiramente com o fruto do meu trabalho. Era um Palio EDX. Lembro que até votei no Fernando Henrique, pela única vez, por causa da estabilidade e também por achar que Lula estava muito desanimado depois das sucessivas derrotas. Em 94, eu tinha votado em Brizola, que não tinha chance nenhuma, apenas para homenageá-lo no final da vida.

Só que, apesar do salário em dia, a Bloch estava à beira do precipício.

_ O Jaquito está afundando essa empresa, todo mês ele solta papagaios à vontade no mercado, um dia isso vai estourar e não demora _ me disse um colega, que, naquele momento, otimista que sou, considerei exagerado. 

A Manchete realmente parara no tempo. Se as semanais Veja, Época e Isto É lhe haviam roubado os leitores interessados em reportagens “sérias”, a Caras atacava por outro flanco, tirando-lhe o público apreciador de frivolidades. O resultado é que a tiragem caía semana após semana, as reportagens, por melhores que fossem, não tinham a menor repercussão, e as assessorias de imprensa nem consideravam mais o veículo _ este um triste termômetro de decadência que eu vivenciaria de novo depois, no Jornal do Brasil. Quando Jaquito, percebeu que a vaca estava indo para o brejo, ela já estava lá havia tempo, dando de mamar aos bezerros que tivera em meio a sapos e pererecas.

Numa última tentativa de recuperar as vendas, ao mesmo tempo em que tentava vender a emissora de TV do grupo, Jaquito tirou o editor Muggiati do cargo que parecia vitalício e contratou Tão Gomes Pinto, um jornalista de São Paulo com vasta experiência, inclusive em revistas semanais. O novo chefe trouxe com ele dois editores de confiança que, no entanto, não se davam. Jaquito também tirou do bolso dinheiro para contratar dois disigners italianos. Talentosos, eles reformularam todo o projeto gráfico da revista, até então diagramada pelo eterno Passos, profissional que exercia aquela função desde a primeira edição, em 1952. Alguns jornalistas veteranos foram colocados na geladeira, outros mais novos chegaram e muita gente ganhou aumento (meu salário praticamente dobrou). Era, porém, a derradeira visita da saúde. A vendagem nunca subiu e, em várias edições, nem havia anúncio na contracapa, o que é praticamente o atestado de óbito de uma revista.

A capa do Cristo Redentor foi um dos maiores
encalhes da história da revista. Tiveram que alugar
um galpão para guardar os exemplares devolvidos


Mesmo assim, vivendo o ocaso de um gigante da imprensa brasileira, ainda consegui fazer algumas reportagens das quais me orgulho, como a que escrevi após acompanhar por alguns dias um dos grupos da marcha dos trabalhadores sem terra, nas imediações de Brasília, rumo a uma manifestação diante do Congresso Nacional. 

Seguir a Marcha dos Sem-Terra, entretanto, representou uma decepção para mim. Eu tinha o movimento como um símbolo da luta pela reforma agrária mas encontrei na estrada um grupo agressivo, cujas foices nas mãos aparentemente serviam mais para brigar do que para cultivar a terra. Senti um cheiro de militância profissional no ar. Claro, havia mulheres e crianças, mas… sei lá, a coisa me pareceu doutrinada demais, agressiva demais, nem de longe remetendo à imagem tradicional do camponês. Eles frequentemente ameaçavam os carros que passavam na estrada quando sentiam o mais leve cheiro de reprovação por parte do motorista. E agradeciam burocraticamente aos que buzinavam em sinal de apoio. Pode ser que essa beligerância tenha nascido da opressão que sempre enfrentaram por parte de policiais, milicianos e grandes fazendeiros. Só sei que, depois de voltar ao Rio, nunca tive coragem de usar o boné do MST que comprei tão empolgado no meu primeiro dia na marcha.

Outra matéria de que me orgulho nessa fase final da Manchete foi a entrevista com o ator Felipe Camargo, que, pela primeira vez, falou detalhadamente sobre sua dependência química. Felipe chegou na defensiva. Era natural depois de tantas exposições de sua vida particular na mídia, que noticiara sem dó as brigas com a ex-mulher, Vera Fischer, as faltas ao trabalho, o acidente de trânsito etc. Tratei logo de tranquilizá-lo, disse que não escreveria nada que ele não quisesse e lhe ofereci até mesmo uma leitura antecipada do texto antes da publicação.

O resultado foi que ele confiou em mim e saiu uma reportagem com várias revelações. Sem desrespeito à privacidade dele.



Na mesma edição, outra matéria correlata, igualmente de minha autoria, mostrava a popularização da cocaína no Brasil por conta do baixo preço. Para isso, contei com a ajuda de um fotógrafo que conseguiu, não me perguntem como, clicar pessoas cheirando pó num ambiente fechado. A única coisa que ele me pediu foi algum dinheiro para financiar a droga dos usuários-modelos.

Nem assim a vendagem subiu.

Os encalhes se sucediam, turbinados por erros flagrantes de edição como o que ocorreu quando Gustavo Küerten ganhou o torneio de Roland Garros, fato até então inédito para um tenista brasileiro. Depois de alguma discussão, ficou definido que Guga seria o assunto principal. O problema é que a única foto boa que tínhamos dele era horizontal e só caberia na primeira página, de corte vertical, se o campeão saísse sem as duas mãos, que estavam levantadas segurando a bandeira brasileira. E assim a Manchete publicou a foto do novo ídolo do tênis... maneta.

Quando Tão Gomes e seus escudeiros chegaram, algumas contratações foram feitas. Lembro que vieram profissionais conceituados de O Dia e da Isto É, entre outros. Os novos chefes também chamaram também uma repórter que estava no JB, mas ela, no entanto, passou maus bocados. Depois de pedir demissão do emprego e começar a trabalhar na Manchete, a jornalista recebeu uma péssima notícia: sua contratação tinha sido suspensa pelo Jaquito. Eu nunca tinha visto uma empresa tirar um profissional de outra e, poucos dias depois, simplesmente desistir de contratá-lo. Alguns dias de apreensão se passaram até que Pedro Jack Kapeller fosse convencido de aquela contratação não seria a gota d’água para a Bloch quebrar e de que ele deveria cumprir com o compromisso assumido. E repórter acabou se juntando definitivamente aos passageiros daquela agonia.

Uma vez, eu disse a ela na redação:

_ Ana, isso aqui é o ó…

_ O ó do borogodó _ ela completou.



SEGURA O TCHAN!

Mas o maior fracasso de vendas dessa fase foi uma capa com o Cristo Redentor, anunciando os Jogos Pan-Americanos no Rio. Foram tantos exemplares devolvidos pelos jornaleiros que, segundo informações de corredor, Jaquito teria precisado alugar um galpão para guardar as milhares de revistas encalhadas.



Para meu azar, justamente nessa edição saiu a minha entrevista com uma dançarina que galgava os primeiros degraus da popularidade naqueles anos. Carla Perez, do grupo Gera Samba (que depois virou É o Tchan) tinha esgotado a edição da revista Playboy aos 19 anos. Lembro que fui num carro da Manchete buscá-la num hotel de Copacabana e a levei até o prédio da Bloch para uma conversa e uma sessão de fotos no estúdio. Quando ela surgiu na Rua do Russel, com todos os seus atributos, foi um alvoroço. Era saúde para dar e vender, já a entrevista… “li vários livros do Jorge Amado mas não me lembro do nome de nenhum”; “meu sonho é transar em cima de um cavalo branco”; "sou loira de nascença, só fiz uma luzes pra realçar”; “meu tio viu minhas fotos na Playboy e disse que eu sou um anjo que caiu do céu”…

Carla era uma ingênua, uma simplória alçada ao estrelato instantâneo como tantas outras. Deixar suas fraquezas à mostra seria fácil para qualquer repórter, resistir a isso era uma questão humanitária. Criança educada pelos programas de Marlene Matos e Xuxa, a quem venerava, a bailarina do tchan era o típico subproduto de um programa que erotizava em vez de educar, uma chaga que atingiu várias gerações no Brasil. Achei Carla Perez uma triste vítima dessa cultura, ou anticultura, da apresentadora infantil sensualizada, personificada por Xuxa e por suas muitas imitadoras que sumiram no caminho. E foi por achá-la uma pobre vítima da pior face da televisão que economizei nas ironias no texto final.

Mas nada repercutia, nenhuma reportagem dava o que falar. Parecia que trabalhávamos em vão, que nosso jornalismo era invisível. O desânimo tomava conta de todos, quem podia dar o fora não pensava duas vezes. Só em duas oportunidades no período em que estive lá a tiragem colocada nas bancas esgotou. Foi nas mortes de Tim Maia e Renato Russo, artistas geniais cuja popularidade nos deu, por alguns breves momentos, a fortuita sensação de que tudo poderia mudar.


CARNAVAIS

A vendagem subia apenas em época de Carnaval, e o clima mudava na redação da revista. Era o único momento em que a Manchete revivia parte do glamour perdido, já que a tiragem dobrava e era ansiosamente esperada pelos foliões. Boa parte das milhares de pessoas que desfilavam ou assistiam aos desfiles no Sambódromo e em outras partes do Brasil, também cobertas por correspondentes, corria para as bancas na quinta-feira seguinte para folhear a revista e, quem sabe, se ver numa daquelas grandes fotos coloridas. 


Foto: Mauro Trindade
Escolhendo fotos de carnaval ao raiar do dia,
com o saudoso Alberto Carvalho

Virávamos duas noites na redação esperando os textos e fotos enviados da Marquês de Sapucaí, do Sambódromo paulistano, de Recife, de Salvador… Conforme chegavam, as fotos eram cuidadosamente escolhidas e os textos editados nas páginas. Eu já tivera a experiência de trabalhar na avenida, na Folha de S. Paulo (e ainda teria novamente, quase dez anos depois, no Jornal do Brasil), mas sempre gostei da chamada cozinha, que era o fechamento na sede por editores e redatores. Claro, como a equipe da Manchete tinha lá suas carências, de vez em quando topávamos com um “quisito" no meio do texto, mas estávamos lá para isso mesmo.

Compadecido das nossas noites insones, Jaquito mandava servir um lanche. No primeiro ano, até que foi melhor, sanduíches de queijo e presunto com refrigerantes, mas, como se sabe, a vaca foi emagrecendo até ficar esquálida. Quando nos demos conta, estávamos comendo pão com ovo .

Lembro até hoje do jornalista Murilo Melo Filho, veteraníssimo na Editora Bloch, exultando ironicamente ao ver os isopores com o lanche chegando à redação:

_ Essa ainda é uma casa farta!

Já Seigiro, o diagramador nissei, usava de eufemismos:

_ Hoje tem pão com granja!

Rir é sempre uma boa saída.

Quando o astral estava muito baixo, uma ida ao departamento de pesquisa podia desanuviar as coisas, exceto pela constatação do sumiço de fotos importantes, como as da Copa de 1970, que desapareceram do arquivo. Quem teria levado os negativos?, era uma das muitas perguntas sem resposta. Outra pergunta que ficou no ar foi feita pelo atendente do departamento quando um jornalista foi lhe pedir uma imagem para uma matéria sobre clima:

_ Tem foto da aurora boreal?

_ Posso ver… em que filme ela trabalhou?


VALÉRIO MEINEL

Certo dia, entrou pela redação um senhor baixinho e gordinho, que foi efusivamente saudado por quem já o conhecia. Era o jornalista Valério Meinel, que escrevera um dos livros mais comentados da década de 70, Por que Cláudia Lessim vai Morrer, sobre o assassinato de uma jovem da Zona Sul do Rio por dois playboys após uma orgia regada a muita droga e álcool. Na época, Valério conseguiu achar uma testemunha chave, um operário que viu o momento em que Michel Frank, filho de um importador de relógios suíços, e o cabeleireiro Georges Khour jogaram o corpo de Cláudia de um penhasco da Avenida Niemeyer. Graças à sua descoberta e à atuação do policial Amiucci Galo, os dois culpados foram presos. Por pouco tempo, claro, pois aqui é o Brasil.

Em fim de carreira e desanimado, Valério não conseguiu reeditar na Manchete seus grandes momentos e ficou pouco tempo ali, onde era constantemente desprestigiado por um dos homens de confiança de Tão Gomes Pinto. Várias vezes, em reuniões de pauta, Valério apresentava sugestões de reportagens que eram descartadas, entre bocejos, por seu desafeto na chefia:

_ Não me emociona… _ resmungava o editor.

Depois de uma dessas reuniões, Valério desabafou para alguns colegas:

_ Não sei o que emociona ele, talvez um caralho bem grosso!

Poucos meses depois de chegar, Valério Meinel deixou a Manchete. Deprimido em casa, acabou morrendo meses depois, tristemente por iniciativa própria.

Presenciar os últimos dias da carreira daquele velho jornalista me fez pensar na profissão que eu havia escolhido. Ingrata por sua rotatividade impressionante, sempre com jovens tomando o lugar dos mais antigos numa forma de as empresas se livrarem dos maiores salários. Além disso, todo o esforço quase nunca é reconhecido, mata-se um leão por dia e, em 48 horas, tudo que você escreveu estará embrulhando peixe na feira, forrando gaiola de passarinho ou juntando mofo num arquivo qualquer. Sem falar no estresse permanente de quem precisa ser rápido e preciso ao mesmo tempo.


EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

Na Manchete, conheci dois profissionais que já me conheciam. Quando eu tinha 9 anos, participei de uma reportagem com outros filhos de artistas naquele mesmo prédio, para a revista Amiga. Estavam lá os três filhos de Rosamaria Murtinho e Mauro Mendonça, a filha de Cláudio Cavalcante, a de Carlos Eduardo Dolabella, e eu, filho do Flávio Migliaccio, o Xerife da dupla com Shazam, tão popular naquele momento. Uma das poucas coisas de que me lembro é que Mauro Mendonça Filho, o menor do grupo, arrancou risadas de todos ao responder à pergunta sobre se preferia viver na Terra ou na Lua (veja só!).

_ Na Lua, porque não sou minhoca pra viver na terra.

As perguntas, feitas pela jornalista eram desse tipo: se preferíamos Chacrinha, Silvio Santos ou Flávio Cavalcante; Wanderley Cardoso ou Jerry Adriani, enfim… mas eu adorei pela primeira vez poder dar minha opinião publicamente, achando de verdade que ela pudesse interessar a alguém.

Além da repórter que nos entrevistou mais de 20 anos antes, reencontrei também, ao trabalhar na revista Manchete, o fotógrafo, que, bem novinho na época, havia feito as fotos dos filhos dos artistas. Como tinha guardado o velho exemplar com a reportagem, verifiquei o nome da jornalista, agora minha colega, e fui comentar com ela a coincidência. A veterana, porém, não gostou muito quando lembrei a ela da entrevista pré-histórica…

_ Você me entrevistou quando eu tinha 9 anos!

_ Ahã…


O FIM

Quando viu que a Manchete nunca mais decolaria, Jaquito mandou embora Tão Gomes Pinto e seus dois escudeiros, aos quais pagava altos salários. Irritado com mais um tiro na água, o empresário definiu numa frase o fracasso daquela derradeira tentativa de recuperação:

_ Comprei um Mercedes com o pneu furado.

Uma injustiça com o experiente profissional que acabara de demitir. Àquela altura, nem o gênio da lâmpada recuperaria as vendas, então por volta dos 7 mil exemplares num país de 180 milhões de habitantes.

A situação financeira da empresa piorava a cada dia. O chefe do setor de transportes mandava mais que o editor-chefe da revista e decidia, ele mesmo, lá na garagem, que repórteres poderiam usar os poucos e castigados carros da empresa. Os funcionários ensaiavam greves, mas não havia mesmo de onde tirar dinheiro, a não ser que fosse da mesma fonte que financiou, em plena penúria geral, o casamento nababesco de uma das filhas do Jaquito. Mas isso não era para o nosso bico.

Em meio à decadência, nós nos divertíamos, pois uma empresa pré-falimentar é sempre muito engraçada, excetuando-se, claro, o dia do pagamento. Um dos nossos poucos consolos era o excelente restaurante que funcionava no último andar, onde só os editores e redatores da Manchete, além da diretoria da empresa, podiam comer. Com uma bela vista e servidos por garçons, desfrutamos da farta e deliciosa comida até pouco antes do epílogo. A comida era tão gostosa que Valério Meinel uma vez comentou:

_ A Bloch é na verdade um restaurante, os caras é que, de sacanagem, resolveram fazer também umas revistas.


NEY BIANCHI

Na maior parte do tempo em que estive na Manchete, sentei numa mesa que ficava de frente para a do veterano jornalista Ney Bianchi, um especialista em esportes que estava ali, exatamente ali, naquela mesa, havia quase 30 anos. Eu, no entanto, já o conhecia desde garoto, por assistir ao programa Operação Esporte, comandado pelo prosaico Carlos Lima, uma mistura de policial, bombeiro, locutor esportivo e humorista. Ney era um dos debatedores da atração trash, exibida por anos na TV Tupi. Num dos primeiros papos, ele me contou que Carlos Lima quase nunca pagava salários mas um dia o teria levado a uma concessionária e retirado um carro zero como forma de saldar os atrasados.

Quando não tínhamos nada para fazer, normalmente no dia seguinte ao fechamento da revista, eu e meus colegas nos dedicávamos a elaborar uma antologia dos atos falhos e piadas do Ney, cujo senso de humor alegrou muito aqueles dias sombrios. Capaz de fazer troça em qualquer situação, Ney, certa vez, discutia com uma das filhas no telefone:

_ Pára de ficar me ligando de cinco em cinco minutos, eu estou trabalhando! Faz o seguinte: vai lá brigar com a sua mãe que, quando eu chegar em casa, te substituo.

Nos tempos das vacas gordas, Ney havia sido enviado pela Manchete para cobrir várias Copas do Mundo. Chile, Inglaterra, México, Alemanha, Argentina… aliás, era do mundial de 1978 uma das muitas histórias que adorávamos vê-lo contar. Incomodado com a rivalidade entre brasileiros e argentinos, que transcendia os gramados e chegava às cabines de imprensa, o comitê organizador daquela Copa decidiu promover um churrasco de confraternização entre os jornalistas dos dois países. Segundo Ney, tudo ia bem, com muita carne e cerveja, até que um brasileiro, já alterado, subiu em cima de uma mesa e gritou:

_ A los brasileños les gusta el culo!

Os argentinos aplaudiram efusivamente às gargalhadas, mas o gaiato verde-e-amarelo completou:

_ El culo de los argentinos!

Pronto. Acabou a festa e começou uma briga generalizada, com direito a jornalistas de ambos os lados esgrimindo espetos de churrasco em golpes quase mortais.

Outra história que Ney contava era sobre quando foi ao interior de Minas entrevistar um tal de Thomas Green Morton, suposto paranormal que por alguns anos enganou até pessoas famosas com seus alardeados poderes. Depois da entrevista, os dois e o fotógrafo Sérgio de Souza foram beber num bar. Encheram a cara de uísque e, na hora de pagar a conta, Ney notou o paranormal meio inquieto (além de bêbado). Quando os dois jornalistas se distraíram, Thomas aproveitou para pular a janela do bar e fugir correndo, não sem antes preparar o ambiente dizendo, como quem não quer nada, que tinha a capacidade de se desmaterializar de repente…

Os títulos e legendas feitos por Ney Bianchi eram uma atração à parte. Quando Fausto Silva apelou em seu programa na Globo e colocou um rapaz de estatura minúscula devido a uma síndrome rara para dublar o cantor Latino, toda a imprensa saiu à cata do pobre homem, apelidado imediatamente de Latininho. Ele passou a ser a personalidade mais disputada do momento, e o Ney sugeriu de pronto o título para o caso de o encontrarmos:

_ "Baixinho é o maior!”

E durante uma competição internacional, nos chegou a foto dos campeões francêses de ciclismo. O problema que não tínhamos o nome de nenhum deles. E Ney cometeu a seguinte legenda para a foto em uma coluna:

“Allons enfants ao pódio"

As histórias engraçadas do Ney, as divertidas peladas nos campos do Aterro, que ficavam em frente ao imponente prédio da Bloch, no entanto, não tinham o poder de reverter a derrocada da empresa.


BREJO

No lugar de Tão Gomes Pinto, Janir de Hollanda assumiu a chefia da Manchete. Sua primeira grande sacada para virar o jogo e aumentar as vendas foi colocar a foto de um menino vietnamita sem os dois braços na capa. Mais um encalhe monstruoso. A essa altura, a revista que já fora uma referência nacional nos anos 50 e 60 vendia menos de 6 mil exemplares por semana.

Foi ficando, portanto, cada vez mais difícil sorrir ali. Num final de tarde de 1999, Jaquito entrou na redação e disse que não tinha mais dinheiro para pagar salários. Os empréstimos que ele pegava no Banco Rural todos os meses para fechar a folha de pagamento haviam terminado. Receberíamos, dali em diante, vales de R$ 150,00 ou R$ 200,00 às sextas-feiras à tarde. Naquele mesmo dia, Ney Bianchi sofreu um infarto fulminante quando voltava para casa.

A verdade é que o principal culpado pela falência de uma empresa é seu dono. Aprendi isso durante a minha carreira, primeiro na Bloch e depois no Jornal do Brasil, as duas que vi morrerem bem de perto. Em última análise, é o dono o responsável pela decisão final e, quando a delega para um gestor, este foi escolhido ou aprovado por ele. No caso da Bloch, Pedro Jack Kapeller administrava tudo de uma forma caótica. Determinava o preço de capa das revistas, por exemplo, na orelhada, sem estudos de custo, praça, público alvo, nada. 

As filhas que Jaquito colocou em postos chave herdaram a incapacidade administrativa do pai. E eu ainda vivia com medo de ter meu nome reconhecido por uma delas, a quem havia entrevistado pela Folha uma vez sobre o inquérito policial que apurava fraudes na venda de programas da Rede Manchete para o exterior. A reportagem sobre o caso Martinsyde Investments, a empresa que a família teria aberto no paraíso fiscal das Ilhas Virgens Britânicas para sonegar pelo menos US$ 613 mil em impostos saíra assinada com meu nome. Mas ela não se lembrou de mim, ou pelo menos nunca deu pinta de lembrar.

Nessa fase dos vales, era deprimente ver antigos profissionais como o fotógrafo Orlando Abrunhosa, autor da célebre foto de Pelé dando um soco no ar ao comemorar um gol na Copa de 1970, na fila para receber uma mixaria que lhes garantisse a semana. A Manchete nessa fase ficou ainda mais surreal. Um veterano repórter que ia trabalhar levado por um motorista particular também recebia vale. Ele pegava o dinheirinho, entrava no carro com chofer e ia embora. E quem às vezes trocava dinheiro para o Jaquito era o homem que vendia cafezinho nos corredores.

Outro que sofreu, mas com gozações foi um diagramador, Barros, que havia trabalhado no Correio da Manhã na época de sua falência.

_ Já afundou um agora vai afundar o segundo _ brincavam os colegas em meio à derrocada iminente da empresa. 

À essa altura, os sócios que administravam (!?) com Jaquito no tempo das vacas gordas já tinham desaparecido. Enquanto ainda dava algum caldo, participaram da gestão mas deixaram o majoritário sozinho na hora da congestão.

Não sei por que motivo, talvez para pesquisar algo no arquivo, uma vez apareceu na redação o jornalista Chico Otávio, profissional sério e de muito prestígio que nessa época já trabalhava em O Globo. Eu o conhecia de outros tempos e foi impressionante ver nos seus olhos o choque com o quadro que encontrara na nossa redação. A decadência da Manchete realmente era chocante para alguém de fora. Nós, que estávamos lá dentro, acabamos nos acostumando.

O crítico de cinema Rogério Durst, com quem eu tinha trabalhado no Globo, até que tentou. Sem opção melhor no mercado, ele acabou indo parar na Manchete, já nessa fase final. No seu primeiro dia na redação, me viu fechando uma matéria em que havia uma grande foto de uma mulher bonita.

_ Ah, então você é que fica com a parte boa _ ele brincou.

_ Aqui não tem parte boa _ avisei logo.

Rogério não aguentou nem 48 horas lá dentro. Após ouvir uma asneira do editor da revista, disse que ia descer para comprar cigarro e nunca mais voltou.

E, como desgraça pouca é bobagem, numa daquelas sextas-feiras de parcos vales, eu parei o carro num sinal da Rua Hilário de Gouveia, em Copacabana… “perdeu, playboy, mete a mão no couro e me dá o dinheiro”. Isso mesmo, um cara me assaltou e levou meu vale. Numa cena típica carioca, o ladrão não fugiu, ficou ali mesmo, naquela esquina, tomando cerveja. Dei uma volta de carro no quarteirão e lá estava ele, conversando com duas garotas a menos de 100 metros da delegacia de polícia e a 50 de onde me assaltara. Parei uma viatura da PM e o apontei.

_ Aquele cara ali acabou de me assaltar.

Os policiais, com visível má vontade, foram até ele, conversaram por alguns instantes e o colocaram, com as duas amigas, na viatura. No breve trajeto até a delegacia, tudo foi acertado entre eles. Na DP, o ladrão começou a me ameaçar sem pudor enquanto os policiais me desencorajavam, dizendo que o dinheiro não estava com ele e que uma policial feminina para revistar as garotas iria demorar “umas quatro horas”. Achei melhor ir embora dali enquanto só tinham me levado R$ 150,00.

Mas quem cortou um dobrado mesmo foi o filho do Jaquito, que ia ao banco às sextas-feiras, com um motorista e um segurança, pegar o dinheiro para o pagamento do vale semanal. Numa dessas tardes, eu entrava no prédio voltando do almoço quando quase fui atropelado pelo herdeiro dos Kapeller. Ele corria esbaforido, abraçado a um malote, fugindo de ladrões que tentaram interceptar o carro em que estava, já bem perto da sede.

Ali, eu vi que passara da hora de ir embora. Um amigo me avisou que tinha uma vaga na editoria de Economia do jornal O Estado de S. Paulo. Arrumei as malas mesmo sem entender patavinas do assunto e peguei a ponte aérea. Cerca de 10 anos depois, recebi na Justiça, com juros e correção, tudo que a Editora Bloch me devia.


LEIA OUTRO CAPÍTULO DO MEU LIVRO:
A lendária Rádio Nacional

Comentários

  1. O que voce relata se aproxima desta outra triste (e vergonhosa) situacao: https://www.metropoles.com/materias-especiais/penuria-como-sobrevivem-ex-funcionarios-de-varig-vasp-e-transbrasil-2

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  2. Você deu sorte porque até hoje eu não recebi todos os juros e correções do que ficaram me devendo.

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  3. Trabalhei na Bloch por oito anos, mas saí (em 1994) antes dessa derrocada final. Já naquela época eram nítidas as causas que levariam a empresa para o buraco. Tive a sorte de ainda pegar a coisa "equilibrada", fiz umas duas dezenas de grandes matérias para a revista Manchete (que, àquela altura, vendia 120 mil exemplares em média; pouco perto dos 500 mil da Veja) e, depois, passei alguns anos na divertida redação da ELE ELA. Hoje, lembrando daquele ambiente, do ritmo do trabalho, parece até que foi em outra encarnação.

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  4. Durante a gestação do meu filho e depois que ele nasceu eu comprei muitas revistas Pais & Filhos e adorava as dicas do dr. Pedro Bloch, confesso que me ajudou muito.
    Sempre que eu passava pelo prédio da Manchete e via aquele grande M lindo na frente, me dava uma certa tristeza de ver que a emissora que tantas alegrias deu para milhões de brasileiros tinha acabado.

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  5. Caro Marcelo, acabei de imprimir seu belo texto para dar para um amigo professor aposentado (Anézio Dutra) que não gosta de computador e percebi que você antecipou uma década ao escrever que em 94 votou no Brizola para homenageá-lo no fim da vida.("Em 94, eu tinha votado em Brizola, que não tinha chance nenhuma, apenas para homenageá-lo no final da vida").
    Ele só morreu em 2004.
    Abraços.

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    1. Acho que tive aula de português com o Anézio no São Vicente de Paulo.

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  6. Belo texto e uma aula de jornalismo e historia. A ultima novela que assisti foi Pantanal na rede Manchete. Felizmente você recebeu o que lhe deviam. Espero que todos tenham tido a mesma sorte.

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  7. showwwwwwwww! O melhor redator que já vi em ação.

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  8. Estou amando as suas histórias. Escreve muito bem e até achei uma matéria de 1984, no Jornal do Brasil, via BN Hemeroteca, sobre o roteiro de uma série que você escreveu para o seu pai. Que triste fim teve a Bloch Editores.

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    1. Obrigado, amigo. A Bloch sempre foi muito mal administrada. Abraço

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  9. Parabéns Migliaccio!!! Belo texto. Abraço grande. Moacir (Baianinho)

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