O escravo sem dono

Ontem, eu vi um escravo sem dono. Vagava pela ciclovia em meio à gente de bem que se exercitava diante do maravilhoso Pão de Açúcar. Todos nós bem dormidos e bem alimentados, nos preparando para mais um dia de trabalho ou de lazer. E aquele homem negro, que nem 30 anos tinha, andando por ali sem rumo, não vivendo a única vida que terá.

Aos que passavam, o escravo sem dono pedia dinheiro para "um café". A maioria sequer olhava para ele. Alguns ainda diziam que não tinham, com medo visível no olhar. Numa das mãos, aquele homem de pele negra carregava uma lata de cerveja quente. Não porque fosse um alcoólatra mas provavelmente por ter sido a única coisa que encontrou no lixo para colocar no estômago. Mal sabe ele que a fortuna do dono da Ambev daria para comprar 40 bilhões de pães com manteiga.

A escravidão não muda. E, se ela é desumana, indecente, pior ainda é ser um escravo sem dono.

"Quem não trabalha, não come"...

"Não existe almoço grátis"...

O capitalismo tem muitas verdades repetidas à exaustão até virarem mentiras deslavadas. Capitalismo, teu nome é egoísmo e insensibilidade.

Jogamos todos no time do Os Outros que se Danem Futebol Clube. Mas o Natal está chegando, faremos juras eternas de fraternidade que vão virar abóbora logo depois da meia-noite do dia 25 de dezembro.

E aquele homem, sem presente e sem futuro, continuava vagando sem rumo pela nossa quarta-feira ensolarada. Sujando a paisagem da gente de bem que reclama da "esmola" do Bolsa-Família. Que diz que os programas sociais são incentivo à vagabundagem.

O escravo sem dono desfilava para nós a sua fome em plena ciclovia. Seus iguais em sofrimento estão por toda parte, no Rio e em outras cidades do país que assassinou sua democracia sem dó nem piedade. Que trocou seu povo por malas de dinheiro.

Não, nem um trocadinho. Tudo que as pessoas tinham para aquele homem eram olhares fugidios de reprovação, nojo, censura por ele estar ali estragando a manhã feliz daqueles que o sistema ainda não cuspiu fora.

Para a maioria, é um vagabundo, um cachaceiro, um ladrão. Melhor manter distância. Seu cheiro de homem sujo incomoda. Um candidato nazista que acabe com esse estorvo seria bem-vindo para muitas daquelas pessoas tão cheias de méritos.

E ele só quer comer alguma coisa.

Um homem faminto aceita tudo. Aceita até trabalhar sem vínculo empregatício, por R$ 4 a hora. Tudo que ele precisa é colocar alguma coisa no estômago. E não faltam empresários de bem para se aproveitar do seu desespero. Mas aquele na ciclovia era um escravo sem dono e, portanto, sem comida.

E ele faria qualquer coisa por comida. Desentupiria esgoto, recolheria lixo hospitalar, qualquer coisa... mas nem isso lhe ofereceram.

Não há trabalho. Não há mais sequer a dignidade mínima de um programa social que lhe mate, pelo menos, a fome.

Então só lhe resta sujar a paisagem dessa gente toda de bem. Vagar pela sua vida sem rumo.


Foto: Marcelo Migliaccio





  

Comentários

  1. Perfeita descrição do Brasil atual, e por que não dizer do mundo, visto que, escrevo de Barcelona e por aqui a reforma trabalhista aumentou consideravelmente o número de pobres e de aposentados que sustentam a família. Não é de se estranhar que a reforma trabalhista brasileira teve como base a reforma espanhola.

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  2. "Sem o seu trabalho um homem não tem honra e sem a sua honra se morre se mata"
    Gonzaguinha

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  3. Parabéns!!!!! Ótima visão e descrição do nosso presente.

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  4. Para esses casos, sempre digo o seguinte: Não basta confortar os aflitos, é necessário afligir os confortados (Henry Sobel)

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  5. Michel Temer no poder é certeza que essa cena se perpetuará! Muito triste!!

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  6. Belo texto! E extremamente triste! Mais ainda por não se ver no horizonte perspectivas de se mudar essa realidade!

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  7. Cada um é responsável por suas escolhas. ..

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    1. A questão é que o Temer não foi escolhido, mas imposto...

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    2. Se vc fez e/ou faz escolhas, vc é um privilegiado. Pessoas como esse rapaz, quase nunca tiveram/tem escolhas. Cego não só aquele que não enxerga!

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  8. E Não existem "escravos sem dono" na venezuela comunista?

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