O esperado abraço

Quando a gente nasce, a morte está lá do outro lado do mundo. Aliás, para uma criança a morte está tão distante que parece nem existir. Não, não é uma coisa desse mundo. Nem desse universo. Tão longe que nem em pensamento ela aparece. Mas o que nenhuma criança sabe é que no momento em que ela nasceu, a morte, em algum lugar, iniciou uma caminhada lenta em sua direção. Passo a passo, dia e noite, sem parar um só minuto, ela atravessará léguas e léguas até que chegue ao seu destino.

Com a adolescência, vem a consciência, pela primeira vez, de que longe, muito longe ainda, há uma dama de negro caminhando vagarosamente. Mas o jovem tem energia demais para se apavorar com aquela da qual os mais velhos têm pânico e evitam a todo custo falar. E vem a revolta inicial em forma de rebeldia, a primeira negação da morte. E o jovem faz merda até dizer chega. Por saber que a morte está ainda muito, muito longe, ele a desafia de todas as formas.

Às vezes, o jovem provoca tanto a morte que ela resolve pegar um jato supersônico e chega antes. Mas não é a regra. Faça a molecada o que fizer, a morte em geral não se abala, não se apressa e continua no seu calmo passo a passo, mas sem parar um segundo de andar.

Os anos vão passando e muitos de nós se dão conta de que não suportam saber que a quilômetros de onde estão a morte caminha em sua direção. E esses desesperados simplesmente passam a correr ao encontro dela, mesmo sem saber exatamente onde ela se encontra. A ansiedade gerada pela certeza de que ela vai chegar, sabe-se lá quando e como, é simplesmente demais para muita gente. E fumamos, bebemos, cheiramos, nos penduramos no alto de uma montanha, dirigimos a 130 por hora, fazemos ginástica até partir os músculos, trabalhamos até adoecer... cada um corre de encontro à morte do seu jeito.

Uns outros tantos tentam negar a si mesmos que ela existe. Encerram-se em igrejas e templos, acreditando que o fanatismo mudará a realidade das coisas. E que, depois dessa vida, renascerão em outra, onde a morte simplesmente não poderá entrar.

Mas isso também não tem efeito algum, a não ser aliviar nosso pavor e nossa ansiedade por sabermos que haverá um fim. Alguns, por mais que tentem se destruir, permanecem caprichosamente vivos. Já outros, paranóicos em não envelhecer, em manter infantil um corpo que está se desgastando naturalmente, acabam surpreendidos antes da hora. A morte resolve pegar conosco um avião que cai, soprar-nos um vírus mortal ou surgir de repente com a velocidade de uma bala perdida.

Mas também não é comum a morte chegar mais cedo. Ela não tem pressa. Caminha e caminha lentamente, agora já não tão longe, já bem mais próxima.

Aos 50 anos, pela primeira vez, sentimos alguma coisa estranha que nos joga na cara a realidade de que o encontro não tardará. Alguns piram, outros roubam milhões, outros resolvem fazer sexo compulsivamente. Por isso alguém já disse que aos 50 anos o homem está no auge de sua vilania.

Aos 60, finalmente conseguimos vê-la a olho nu. Longe, pequenininha no horizonte porém já visível. E sempre naquele passo inabalável, irritante, na nossa direção.

Lá pelos 70 anos, ela subitamente dobra a esquina para a qual passamos a vida olhando, conseguimos ver seu rosto. É um susto. Seu sorriso no canto dos lábios, um brilho estranho no olhar. Não dá pra definir se ela está feliz por nos encontrar ou se é mesmo malvada como sempre nos disseram. Mais ou menos dez anos depois, sem apressar uma única vez o passo, a morte está a um metro de nós. E a surpresa: passamos a vida toda enlouquecidos à toa. Ela tem um sorriso plácido. Veio o mais devagar que pôde para que pudéssemos aproveitar ao máximo as muitas coisas boas da vida. O sol, o mar, os rios, a música, os amigos, as brincadeiras, as estrelas, os animais, as flores, as crianças... E, burros que somos, deixamos de viver com medo desse encontro que agora está iminente.

Aos 90 anos, talvez um pouco mais ou um pouco menos, podemos ouvir a respiração da dama de negro de tão perto que ela está. Podemos enfim olhar no fundo dos seus olhos. E, antes que possamos interpretar o que vemos, ela nos abraça. Um abraço quente, acolhedor como a placenta materna.

Um abraço esperado por uma vida inteira.

Foto: Marcelo Migliaccio

 
 

Comentários

  1. A questão é: para onde seguimos drpois deste abraço.? A vida é surpreendente demais para acabar como um filme.

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  2. Parece estranho mas é a única certeza que temos na vida. Excelente texto. 👏

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