A lendária Rádio Nacional

Foto: Marcelo Migliaccio


Saí da TVE porque não aguentava mais produção de programas mas estava difícil conseguir emprego em alguma redação de jornal no Rio. Sem experiência, dei algumas vezes com o nariz na porta. Lembro que cheguei a ir mais de uma vez ao imponente prédio do Jornal do Brasil tentar a sorte. Numa das raras oportunidades em que meu pai intercedeu por mim _ não por falta de vontade dele e sim por não ser da sua natureza nem da minha _ acabei diante do veterano jornalista Zuenir Ventura, que reinava imponente num canto da redação do JB. Enchi o peito de ar e fui falar com ele, tendo na mão um bilhete escrito à mão pelo meu pai, que o conhecera alguns anos antes mas com quem nunca mais mantivera contato.

Sério, Zuenir leu o bilhete e me olhou como se fosse um médico a examinar o paciente.

_ Por que você quer ser jornalista?

_ Bom… eu gosto de escrever… eu gosto muito…

_ Mas o jornalismo não é só isso, tem apuração, tem outras coisas que é preciso fazer _ retrucou ele, negando-me até um simples sorriso.

Vi naquela hora que daquele mato não sairia coelho. Para não dizer a si mesmo que não fizera nada, Zuenir me encaminhou ao então editor de Esportes do JB, João Máximo. Não sei por que, mas reparei que ele usava sapatos de pano, tipo alpercatas, sem meia. Ainda mais frio que Zuenir, Máximo me disse que estava com a equipe completa mas que, talvez, pudesse me colocar como plantonista das corridas de cavalo, às segundas e quartas à noite. Pelo que entendi, nos dias de páreo, eu trabalharia na redação até tarde, pegando os resultados passados pelo setorista que ficava no Jóquei. Se não era isso, era algo parecido. Pegou meu telefone e disse que me ligaria tão logo conseguisse autorização para preencher a vaga. Se eu ainda estivesse esperando pelo telefonema dele, não teria feito mais nada na vida até hoje. Seis ou sete anos depois, eu e João Máximo fomos colegas na sucursal do Rio da Folha de S. Paulo. Mais tarde, nos reencontramos mais uma vez, na redação de O Globo. Colegas somente.

Em outra oportunidade, animado com o fato de o JB ter publicado um texto do meu vizinho e músico Paulo Malária, levei uma pensata minha sobre cinema ao Artur Dapieve, que fazia parte da equipe do Caderno B do Jornal do Brasil. Educado e atencioso como sempre, Dapieve deu uma breve olhada no que escrevi, o suficiente para ver que estava muito fraco. Com jeitinho e sensibilidade, ele disse que o espaço dedicado a contribuições de leitores seria reestudado e que, quem sabe mais para a frente, eu poderia me candidatar de novo a preenchê-lo. Realmente, eu escrevia mal quando me formei. Acontece com quase todos os jornalistas que saem da faculdade, o problema é que alguns continuam escrevendo mal até se aposentarem…


PRAÇA MAUÁ, 7

Então, estava eu lá, naquela água de salsicha, até que surgiu, enfim, uma nova oportunidade de trabalho, mais uma vez longe do jornalismo. Meu grande amigo Addison Coutinho avisou que havia uma vaga de produtor na Rádio Nacional e lá fui eu. Trabalhar na lendária emissora, mesmo que como produtor, me animou. E foi quase emocionado que subi pela primeira vez no elevador do edifício A Noite, na
O prédio quando reinava soberano no centro do Rio
famosa Praça Mauá, o primeiro arranha-céu construído na América Latina. De cara, cruzei com o outrora famosíssimo Cesar de Alencar, já então um ancião mas ainda dono de um programa nas manhãs de sábado que quase ninguém ouvia. Fiquei a observar aquele homem alto, extremamente magro, com brilhantina no cabelo, e a pensar que ele, nos anos 50, era um grande campeão de audiência do rádio, com multidões formando filas que davam voltas no quarteirão para ver os artistas que ele apresentava no auditório, de Emilinha Borba a Cauby Peixoto.


Era 1987 mas os resquícios da ditadura militar ainda estavam pelos cantos da velha rádio. Havia um policial que tinha um cargo de produtor e só aparecia uma vez por semana. Ficava 40 minutos colocando apelidos em todo mundo e ia embora. 

Trabalhei na produção de um programa de variedades chamado Revista Nacional. Ia ao ar de segunda a sexta, das oito às dez da manhã, horário nobre do rádio, e era apresentado por um comunicador desconhecido no Rio mas que viera de Brasília com o status de amigo do superintendente-geral da Radiobrás, empresa que comandava todas as rádios do governo federal. 

Eu fazia quase tudo no programa, praticamente redigia a atração inteira, da escolha das músicas e dos convidados para as entrevistas, passando pela elaboração das perguntas, até a redação das crônicas que o apresentador lia no ar, algumas de humor e outras sérias, chorosas, como era tradição no rádio AM. Ficava um pouco frustrado por ele não citar o meu nome como autor dos textos que lia, dando a entender aos ouvintes que tudo saía da cabeça dele. Mas, como eu precisava aprender e trabalhar, ficava na minha. A gente tem que engolir muito sapo no início, por isso é difícil recomeçar debaixo quando já se tem uma certa idade e experiência. Sapo demais dá câncer. Chega uma hora em que ele não passa mais pela goela.

No alto daquele prédio onde se respirava a história do rádio no Brasil, eu aprendi muito, inclusive no terraço, com o mar de prédios do Centro do Rio aos meus pés, conversando com o contínuo Cosme, um gozador que se gabava de sua amizade com o locutor José Carlos Araújo, em cuja casa fazia serviços nos fins de semana e de quem ganhara “uma televisão a cores”.


GAROTAS 

Também aprendi na Rádio Nacional que é muito perigoso conversar com as repórteres numa redação. Como a sala da produção do meu programa era próxima, volta-e-meia eu ia bater um papo com os colegas jornalistas, garotas incluídas e principalmente elas. Foi depois de participar de uma dessas rodinhas que fui abordado por um repórter cascudo, que também trabalhava na Rádio Globo, onde acordava de madrugada para percorrer a cidade no carro da emissora, o “amarelinho”. Na Nacional, ele dava uma enganada no serviço e puxava o saco dos chefes do departamento de jornalismo. Cada um se vira como pode. Numa dessas bajuladas, ele transformou-se em moleque de recados e veio me dar um aviso em nome do chefe, que ficou em sua mesa nos olhando de longe.

_ Você conversa demais com as garotas aí.

_ Como? _ perguntei, sem entender se aquilo era aquilo mesmo.

_ O chefe lá tá reclamando que você conversa demais com as garotas. Atrapalha o serviço delas.

Sim, com a maior cara-de-pau do mundo, ele veio me dizer que eu não devia mais fazer aquilo. Mesmo assim, comecei a namorar uma das estagiárias, relação que durou uns bons meses, até eu deixar a emissora. Mas passei a evitar as conversas com o harém do homem. Daquela vez, me safei. Mal sabia eu que perderia dois empregos mais adiante por causa de ciúme de chefe.


DESCOBERTA

Foi com essa adorável namorada, num show no casarão da UNE, no Catete, que me empolguei com o som de uma banda de reggae desconhecida lá da Baixada Fluminense. As letras tinham mensagem e o som era poderoso. A banda, se chamava Lumiar. Ao final da apresentação, fui até eles, disse que produzia um programa na Rádio Nacional e gostaria de convidá-los para uma entrevista. Todos ficaram muito animados _ principalmente o vocalista, Rás Bernardo _ e marcamos na segunda-feira seguinte. Quando chegaram ao estúdio, porém, nos mostraram sua única fita, que não tinha qualidade nenhuma para ir ao ar. Feita num velho gravador de rolo, simplesmente foi descartada pelo operador Cidalino, um veterano do tempo do Repórter Esso.

_ Isso não dá para tocar! _ disse o experiente técnico de som.

Frustrados como eu, os rapazes foram embora, prometendo voltar em breve com uma gravação melhor, que pudesse ser tocada para acompanhar e ilustrar a entrevista deles. Nunca voltaram, pelo menos enquanto permaneci na rádio. Cerca de um ou dois anos depois, aquela mesma banda virou um sucesso nacional, com o nome de Cidade Negra.

Os divulgadores nos levavam muitos discos que estavam saindo do forno e alguns artistas foram ao programa promover seus trabalhos. Foi assim que conheci Almir Guinéto, com seus cordões e pulseiras de ouro, Jerry Adriani, sempre simpático, entre outros. Quando o divulgador da Copacabana me trouxe o novo LP de Raul Seixas, Uah Bap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bum!, fiquei animado com a possibilidade de conhecê-lo pessoalmente mas recebi logo um balde de água fria.

_ Esquece, ele não vem aqui, está internado, fazendo sonoterapia _ disse o divulgador.

Eu adorava visitar a discoteca da rádio e ficar olhando as capas  daquela infinidade de discos de vários tamanhos e rotações, cada um carregando em seus sulcos histórias e lembranças de épocas passadas. Conversava muito com os funcionários mais antigos e ficava fascinado com os causos que contavam, como o encontro marcante vivido pelo “seu" Reis, que, embora bastante idoso e com décadas de emissora, ainda ocupava um cargo subalterno.

_ Eu lembro quando o Roberto Carlos vinha aqui, ainda desconhecido, tentar cantar nos programas de calouros da rádio _ lembrava Reis _ eu sempre o ajudava a subir no palco, porque ele tinha dificuldade com a perna mecânica. Uma vez, muitos anos depois, eu estava esperando um ônibus na Praia de Botafogo e parou no meio-fio um carrão lindo. Quando o motorista abriu o vidro do carona, eu vi que quem dirigia era o Roberto. Ele me cumprimentou, perguntou como eu estava, lembrou de mim!

Assim como a TVE, a Rádio Nacional é uma estatal. E eu, prestador de serviços novamente, via como os contratados efetivos negligenciavam o trabalho devido à falta de cobrança e à acomodação natural de quem não pode, por força de lei, ser demitido. Certa vez, decidiram fazer um novo plano de cargos e salários na emissora. A coisa veio pronta de Brasília e muitos ficaram chateados com algumas distorções. O “seu” Reis, por exemplo, apesar de beirar os 70 anos, foi promovido a "assistente de produção júnior"…


DESPRESTÍGIO

Meu problema lá começou quando, num belo dia, o apresentador da Revista Nacional decidiu ler uma crônica escrita por um amigo dele e, aí sim, quando terminou, disse: “Essa crônica é de autoria do Fulano de Tal". Aí eu fiquei chateado e fui falar com ele.

_ Pô, você nunca cita meu nome e quando o texto é de outra pessoa você dá o crédito?

Meio sem jeito e meio cara-de-pau, ele disse, como se estivesse me fazendo um grande favor, que dali em diante citaria meu nome. Fez isso no dia seguinte, mas depois não mais. 

Mesmo desprestigiado, continuei trabalhando lá. Na escolha das três músicas que eram tocadas diariamente, comecei a colocar coisas que não estavam na parada de sucesso ditada pelas grandes gravadoras mas que eu achava boas. Tipo Velha Guarda da Portela. Como eu fazia todo o trabalho na véspera, na parte da tarde, ouvia em casa, no dia seguinte pela manhã, o programa ir ao ar. Foi aí que notei que o assistente de produção que colocava os discos selecionados por mim começou a trocar as músicas que eu escolhia por sucessos comerciais de Wando, Michael Sullivan e afins. Quando fui falar com ele, ouvi que o programa tinha que tocar coisas populares e não "músicas que ninguém conhecia”. Bolas, era uma rádio estatal, sem compromisso com gravadoras e com o mercado, o lugar ideal para se ouvir boa música, pensei. Mas não, o pensamento dele, e também do apresentador, é que tínhamos que imitar as rádios comerciais. Vi então que era hora de começar a procurar outro emprego.

Antes que eu pudesse achar um novo trabalho, porém, o tal comunicador me chamou na sala dele e usou uma imagem que jamais esqueci:

_ Sabe, Marcelo, as coisas aqui são como uma roda gigante. Um dia, a roda para com você lá em cima; no outro, com você embaixo. Eu agora fiquei por baixo. Mudaram o comando em Brasília e eu vou ser obrigado a colocar uma outra pessoa, indicada pelo novo gerente geral, no seu lugar.


Senti aquele arrepio gelado subindo pela barriga e se espraiando pelos braços, a boca ficou seca, uma sensação horrível que eu voltaria a sentir ainda outras vezes na minha vida profissional sempre que fui comunicado que estava demitido. No meu lugar na produção da Revista Nacional, entrou um veteraníssimo radialista, que, coincidentemente, alguns meses antes, havia feito uma palestra para a nossa turma de jornalismo na Universidade Federal do Rio de Janeiro. A palestra foi ótima. Apesar de um pouco gago, ele tinha o dom da oratória. No final, emocionou a todos os alunos, dizendo que, depois de formados, poderíamos procurá-lo e ele tentaria, com todas as suas forças, nos ajudar a entrar no mercado de trabalho. E foi justamente ele, que já tinha um emprego na Rádio Globo, quem me substituiu, sem saber, claro, na Rádio Nacional, indicado pelo superintendente que agora estava em cima na roda gigante. Dias depois, me contaram que ele jogava todo o trabalho em cima do assistente de produção e passava a maior parte da manhã cochilando numa poltrona da rádio

Mas foi bom. Sempre é. Saí dali, fui morar em Brasília e cobri toda a Assembléia Nacional Constituinte de 1988, iniciando, de fato, minha carreira jornalística.


LEIA OUTRO CAPÍTULO DO MEU LIVRO:
Aconteceu, virou Manchete

Comentários

  1. Muito bom! Vou ler o livro todo.

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  2. Muito legal a história. O melhor ainda é que dá nome aos bois....

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  3. Essas historias são ótimas de ler e eu sempre imprimo para um amigo que não tem acesso ao blog (sem computador), o professor Anézio Dutra que deu aula de português no São Vicente de Paulo na mesma época do Chico Alencar, ele gosta muito de ler.

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    1. Fui aluno do Anésio, ele ainda usa aquele bigodão? Mande um grande abraço pra ele. Estudei no São Vicente de 1976 a 1981. Abraço pra você também, Cury!

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    2. Dei o seu recado, ele mandou outro abraço pra você e ficou muito feliz de ser lembrado.. Ele raspou o bigode e agora está com o cabelo bem grisalho, e essa semana ele fará aniversário (76 anos).
      Nos encontramos sempre no barzinho perto da nossa casa, eu não bebo, mas gosto de passar lá para bater papo com ele e com o jornalista Marceu Vieira.
      Pena que não dá pra mandar uma foto dele, eu tenho salva no meu computador.
      Grande abraço.

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    3. Que bom, Cury, o maior troféu de um professor é ser lembrado por seus alunos mesmo com o passar dos anos. Um grande abraço pra você.

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  4. Mais um belo relato. Interessante como os percalços da carreira são parecidos, apesar de atuamos em áreas totalmente diferentes.

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    1. Ser humano é tudo igual, quando não presta, não presta e o mercado de trabalho deixa isso patente.

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  5. Sensacional, amigo ! Sensacional. Curioso como muitas das passagens eu não lembro.Talvez porque tenha saído da Nacional antes de você. Lembro da namorada. Linda e meiga. Do Sidalino (acho que é com S) e do comunicador mala. Com seus quilos de sobra. Mas me emocionei.
    Vivi ótimos momentos lá. Só faltou contar a história de um "garoto" que telefonou pra Rádio num domingo de manhã. O apresentador atendeu - "Temos um ouvinte na Linha 2. Bom dia. Quem fala aí, meu querido ?" disse ele com aquela voz de galã de padaria de esquina. E o garoto respondeu - "Aqui é o Tony, da Urca .... "

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