"Me leva pro PInel?"

 Como sempre, eu pedalava meus problemas bem cedo, antes que a cidade vire uma sucursal do inferno. Uma mulher que depois vi carregar uma mochila surrada nas costas se interpõe na ciclovia.

- Me leva pro Pinel? Preciso de uma guia pra ir pro Pinel.

Sem querer me comprometer, aponto a direção do instituto de psquiatria público cujo nome virou sinônimo de maluco no Rio. Cerca de quatrocentos metros à frente, se muito.

Parto com meu egoísmo apressado mas o rosto desorientado e sofrido daquela mulher vem comigo.

Quando volto, ela está sentada na calçada com um folheto religioso na mão. De longe vi que era um daqueles que testemunhas de Jeová distribuem por aí.

_ Vem, vou com você até o Pinel. Como é seu nome?

_ Nadir.

_ De onde você veio?

_ Friburgo.

Enquanto caminho ao lado dela, empurrando a bicicleta com a mão direita, ela cita passagens bíblicas que deve ter acabado de ler no folheto.

_ Você mora onde?

_ Na rua. Um homem bom me levou pra dentro da casa dele, eu dormia junto com os filhos dele, mas veio uma negra e me expulsou de lá. Uma negra me expulsou de lá. 

Calculo que foi há muito tempo mas sinto que para ela foi ontem. Terá sido sempre ontem.

Nadir, também negra, me diz que nasceu em 1976. Uma coisa que aprendi como jornalista é que nenhum ser humano esquece o ano em que nasceu, mesmo que não saiba mais dizer quantos anos tem.

Bem recebido pelo porteiro, deixo a bicicleta num canto e entro na recepção. Uma funcionária por trás de um guichê blindado diz a um homem barbudo que ele logo será recebido pelo médico.

_ Vai demorar? Vou dormir, hein! _ diz o homem de uns 30 anos que senta num banco e começa a mexer na mochila.

Nadir ao meu lado já conversa com um rapaz magrinho que parece ser de casa.

_ Estou com dor na perna _ ela diz.

_ Eu também _ fala o rapaz.

Quando chego no guichê a funcionária, olhos fixos no computador, me faz descobrir que Nadir sabia muito bem onde era o Pinel.

_ Já estou abrindo a ficha dela aqui. Onde a encontrou? 

_ Ali na ciclovia.

_ Ela já chegou aqui até em ambulância do Samu.

_ Mas e aí?

_ Ela vai ser examinada pelo médico e, se ele achar que deve, encaminha para o Caps.

- É, porque ela não tem casa, né?

_ Mas ela não fica no Caps. Chega lá e não fica.

Olho para Nadir. Ela continua ao lado do rapaz. Tira um saquinho de amendoim de 1 real da mochila e pergunta ao colega:

_ Quer um amendoim?

_ Quero.

Ela volta-se pra mim.

_ Você quer um?

_ Não, Nadir, obrigado, estou de barriga cheia.

Foto: Marcelo Migliaccio





  



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