A velhinha e o peixe escuro
A cena eu vi num restaurante. A família na mesa e o filho, de uns 50 anos, dizendo à mãe, uma velhinha frágil e de cabelos totalmente brancos que deveria ter mais de 90:
_ Não, mamãe, o médico disse que peixe escuro a senhora não pode comer.
Com o cardápio nas mãos trêmulas, a anciã nem levantou os olhos, não argumentou, nem muito menos contestou. Mostrou a resignação forçosa dos nonagenários e permaneceu calada.
Fiquei a me perguntar por que privar uma pessoa naquela idade de um dos prazeres que ela tem na vida. Vale a pena ela, já no fim da estrada, deixar de almoçar seu peixe favorito num domingo? Quanto tempo ela terá mais de vida por causa dessa recomendação médica. E que vida terá no tempo que lhe sobra? Uma não-vida cheia de "não pode"?
Alguém vai dizer ao Oscar Niemeyer que, aos 104 anos, ele deve abandonar sua inseparável cigarrilha?
Sim, sempre tem um chato que chega e diz:
_ O senhor não deveria fumar, mestre.
Outro dia, sem querer, abri uma gaveta em casa e vi lá, jogado, um relógio caro que comprei certa vez num arroubo consumista. Olhei pra ele, pensei em colocar no pulso, mas aí veio aquele pensamento mesquinho.
_ Não, é um relógio caro, podem roubar.
E percebi que comprei aquele relógio e não o tenho. Se não se usa alguma coisa, não se tem essa coisa. O relógio não é meu, é da gaveta. Meu medo faz com que eu não o possua de fato, apesar de tê-lo comprado.
O relógio nunca vai ser roubado por um dependente de crack, e mesmo assim eu fiquei sem ele, assaltado diariamente pelo meu próprio medo.
É o caso do cara que compra um carro novo e não tira o plástico dos bancos para conservá-los por mais tempo. Ou da outra que tem uma roupa novinha no armário mas guarda para um dia especial. O dia nunca chega e, quando ela decide usar assim mesmo, vê que o vestido amarelou ou foi estragado por uma traça.
Assim é nosso corpo. Feito para usarmos. A vida está aí, passando. Não adianta meter-se numa redoma na esperança, quase sempre vã, de viver mais. Vamos nos permitir.
É preciso viver bem, com prazer, porque a única certeza é o agora. Aproveite o dia.
Pura verdade. Como diz um blues de Muddy Waters,pedras que rolam não criam musgo...
ResponderExcluirConcordo ampla, geral e irretritamente com este ótimo post, assim como com estes versos de "Tempos modernos", do Lulu Santos:
ResponderExcluir"Hoje o tempo voa amor
Escorre pelas mãos
Mesmo sem se sentir
E não há tempo
Que volte amor
Vamos viver tudo
Que há prá viver
Vamos nos permitir...", desde que sejamos os responsáveis únicos pelos resultados inevitáveis do que pudermos escolher, ou não.
Quanto a possuir coisas (caras)das quais não poderemos usufruir, considero quase um delírio, utilitarista que sou. Acumular somente, sem jamais usufruir, além de sovinice é quase autopunição. Se não vai usar, melhor não ter, evidentemente. Parece haver, como no caso lastimável da velhinha, uma inversão da qualidade do viver, substituída, devaneantemente, pelo prolongamento do existir ou durar. Lastimável.
Pensei nessa música mesmo...
ExcluirFoi exatamente esse pensamento que tive, quando os médicos e meus irmãos disseram que meu pai não poderia mais fumar, falei que já era meio tarde para isso, pois ele já estava com a saúde totalmente comprometida e debilitada por um câncer nos pulmões, causado pelo cigarro, e tirar repentinamente um vício de alguém, requer muita psicologia e paciência.
ResponderExcluirComo meu pai não teria muito tempo de vida, fui contra todos, pois ele passou quase a vida toda fumando, é no fim de sua jornada, proibi-lo de uma coisa que lhe deu prazer durante anos seria uma crueldade nesses momento.
Infelizmente perdi meu pai para o maldito cigarro, mas não fui cruel com ele, quando já não tinha mais o que fazer.
P.S. Ele só tinha 56 anos e eu 20.
Cury
Foi uma decisão difícil, né, Cury?
ExcluirMuito difícil, e até hoje (depois de 28 anos), ainda me vejo naquele momento que foi sem dúvida o mais triste de minha vida.
ResponderExcluirCury
Vamos à pergunta que não quer calar, meu prezado: você colocou o relógio no pulso?
ResponderExcluirNão, deixei na gaveta. Mas vou usar hoje!
ExcluirLevarem o relogio até q nao é nada, o problema é se levarem o nosso tempo de vida junto com ele... Vale a pena liberar as drogas? Torelly
ResponderExcluirPra mim, não vale a pena proibir.
ExcluirRssssssss, o dito "dependente de crack" agradece
ExcluirVivemos a dizer "não". Não posso, não devo, não uso, não mereço, não consigo...
ResponderExcluirE um dos grandes responsáveis pelo reprimenda nossa de cada dia é, senão outro, o medo.
Hoje, nem nos damos conta que um dia tivemos medo de dar o primeiro passo, de ficar de pé por 5 segundos, do vaso sanitário... Vencemos muitos medos, mas, na minha opinião, o maior dos nossos medos é o da perda. O medo que censurou o peixe é o mesmo que impede o uso do acessório caro, embora haja graduações na escala do medo.
Não à toa também, a medicina virou um grande negócio, quando vende a ilusão de que pode nos dar migalhas de vida, além da cota que nos é destinada; Como as drogas, lícitas e ilícitas, para nos libertarmos de nós mesmos.
A verdade é que não somos educados para aceitar a vida humana como algo inserido num projeto maior, do qual somos apenas uma pequena engrenagem, singular, mas finita e naturalmente degradável.
Então, sigamos a dica do nosso querido amigo, aproveitando para ser feliz hoje e amar sempre.